quinta-feira, outubro 17

Assim começa o livro...

Era um homem estranho e a sua mulher não pôde deixar de rir ao escutá-lo. Como se fossem materiais que pensam, dissera Joseph Walser. Claro que os humanos eram materiais que pensavam! Materiais com alma, diria mesmo Margha.

Joseph Walser dirigiu-se ao seu compartimento. Margha nem sequer levantou os olhos. Walser era coleccionador. De quê? Ainda é cedo para o dizer. Mas nessa manhã havia aumentado com significado a sua colecção.

Vestia umas calças simples, quase de camponês, e os seus sapatos castanhos estavam absolutamente fora de moda.

A mulher disse:

— Estás vestido como noutro século. Já ninguém pensa assim.

Joseph Walser não traz documentos.

Alguém diz: estes dias não são para distracções, são necessários documentos. Joseph Walser recebe a reprimenda em silêncio. A distância era proporcional ao espanto. Quando os acontecimentos se sucediam a centímetros, ou a metros: nada de mais, apenas monotonia. Esta encosta-se aos homens, enquanto o espantoso não é tocável. 

No mundo tranquilo a introdução de uma única substância altera fortemente as previsões para o dia seguinte. A morte ainda não foi introduzida como substância vulgar, mas aproxima-se um mês imundo, segundo algumas previsões.

— Um mês imundo — murmura Walser para a sua mulher Margha.

Mas um mês onde se toca, colocando o medo insultuoso na extremidade dos dedos.

Tocarás no próximo mês como tocas com a mão direita no rio sujo: depois deverás limpar os dedos, lavá-los.

A técnica de infl uenciar os homens assustando-os com o que ainda não existe é antiga. É isso que sucede mais uma vez. Fala-se de armamento militar que avança com apetite; é este o termo: apetite. Como se as armas tivessem estômago, como um organismo. Uma espécie de saliva grotesca, metálica. Porém, só o trabalho mental foi perturbado, a realidade física das coisas ainda existe bem organizada e calma. As fábricas mantêm os barulhos atentos que correspondem aos movimentos previstos das máquinas pacíficas, e posteriormente surgem os produtos necessários. O fenómeno de causa e efeito mantém-se na indústria, nenhuma máquina interrompe o circuito habitual para
se afastar em direcção a acontecimentos como milagres ou explosões.

Felizmente nenhum milagre, murmura Klober Muller, o encarregado da fábrica onde trabalha Joseph Walser.

Como se a guerra fosse precisamente uma concentração excessiva de milagres. Um abuso de acontecimentos no mais curto espaço de tempo, uma aceleração sobrenatural, um atrevimento humano, e, mais que indelicadeza: uma rudeza exercida sobre o tempo.

Os acontecimentos necessitam de intervalos signifi cativos entre si. Não se devem acumular como se fossem mercadorias medíocres, os acontecimentos não são mercadorias medíocres, são coisas valiosas, disse Klober.

A seu lado estava Joseph Walser, com os seus sapatos castanhos absolutamente fora de moda. Klober não pôde deixar de o notar.

— Esses seus sapatos — disse — são absolutamente irresponsáveis.

Joseph Walser olhou para os próprios sapatos e levantou a cabeça. O sorriso que tinha pensado fazer naquele ligeiro momento de tensão desapareceu quando os seus olhos se fixaram no rosto de Klober. O encarregado não brincava. De forma alguma: estava irritado.

— Os seus sapatos são absolutamente irresponsáveis — repetiu Klober Muller.

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