quinta-feira, outubro 10

Como a Alemanha lida com o analfabetismo funcional

Uma vida sem ler e escrever é inconcebível para a maioria dos seres humanos. No entanto, na Alemanha, a baixa alfabetização faz parte do cotidiano de 12% dos cidadãos entre 18 e 64 anos, segundo a conclusão de um estudo da Universidade de Hamburgo, apresentado em maio de 2019.

O LEO Studie ressalta que, entre os 6,2 milhões de pessoas estatisticamente registradas, também estão as que reconhecem letras, palavras e frases individuais, mas têm dificuldades em articular as orações entre si. O resultado é que não conseguem compreender, ou só com muita dificuldade, o sentido de um texto mais longo e tampouco escrevem fluentemente.


Kerstin Goldenstein, de 60 anos e moradora de Trier, desenvolveu sua própria estratégia para lidar com as dificuldades na escrita: "Quando quero mandar um cartão de aniversário para alguém, escrevo meu texto num pedaço de papel e o coloco dentro do cartão. Se cometer um erro, posso jogá-lo fora e começar de novo", explicou à DW.

Dois ou três anos atrás, ela não era capaz de falar sobre isso. "Foi um longo caminho, tanto para lidar com o assunto mais abertamente, quanto para aprender a escrever direito." A vergonha sentida quem possui déficit de leitura e escrita é enorme, revela. Apesar de suas dificuldades, Goldenstein considera uma sorte ser capaz de ler um livro em ritmo lento.

Algumas editoras se especializaram em publicar literatura mundial e best-sellers em linguagem simples. Por exemplo, o best-seller Tschick, de Wolfgang Herrndorf, sobre dois amigos de 14 anos que fazem uma longa viagem de carro juntos, foi lançado em alemão simplificado.

Goldenstein completou o ensino médio, fez um curso de capacitação profissional, trabalhou primeiro num açougue e, por fim, numa loja de departamentos, num total de 37 anos. Ela agora está aposentada.

Mas como, num país desenvolvido como a Alemanha, onde rege a obrigatoriedade escolar, pode haver crianças que se formam na escola sem poder ler e escrever em nível mais elevado? "Minha professora realmente não percebeu minhas dificuldades", recorda Goldenstein seus dias de escola num vilarejo no Mar do Norte.

Em sua infância e adolescência, nas décadas de 60 e 70, pais e professores não estavam particularmente preocupados com crianças com dificuldades de leitura e escrita, explica. Ela conseguiu se formar porque era muito boa nos exames orais, e assim compensou seus erros ortográficos na nota final.

Apenas alguns anos atrás, quando percebeu que os problemas de alfabetização afetavam seu bem-estar geral, Kerstin Goldenstein procurou ajuda, inscrevendo-se num curso de alemão da Volkshochschule, instituição pública de ensino para adultos. "Nunca vou escrever bem, mas fiz muito progresso, e agora posso fazer o que nunca julguei ser possível: escrever contos", diz, com orgulho.

Ela e outros analfabetos funcionais fundaram um coletivo de escritores. Além de porta-voz da organização, ela é também uma espécie de "embaixadora do aprendizado" da Federação de Alfabetização e Educação Básica (Alfa), com sede em Münster. A associação informa sobre cursos de alfabetização em todo o país e oferece uma linha direta telefônica anônima para quem procure aconselhamento.

"Dos 6,2 milhões consideradas analfabetos funcionais ou de baixa alfabetização em todo o país, apenas cerca de 30 mil por ano participam de aulas de alfabetização", explica o diretor de projetos da Alfa, Tim Henning. "Temos apenas cerca de 100 'embaixadores do aprendizado' em todo o país, mas eles são importantes motivadores, e gente com que os demais portadores de problemas de alfabetização podem se identificar."

Segundo Henning, as causas do analfabetismo funcional são múltiplas. "Identificamos alguns fatores-chave, como o contexto social. Se os pais não têm interesse em educação, fica mais difícil para a criança." Outro fator importante é o sistema escolar: "Se as crianças não aprendem adequadamente a ler e escrever no ensino fundamental, raramente conseguem compensar no médio."

Outras causas podem ser dislexia ou distúrbio de déficit de atenção. Também a morte de um dos genitores ou o seu divórcio podem atrapalhar o aprendizado dos filhos, que se sentem isolados e não têm necessariamente como expressar suas necessidades.

Embora o resultado do LEO Studie mais recente seja melhor do que em 2010, suas constatações seguem alarmantes. As capacidades e limitações dos pouco alfabetizados são muito variadas. Alguns, como Goldenstein, conseguem ler livros e apreciar a leitura. Outros não saem do bairro por não conseguirem ler placas de trânsito nem os itinerários do transporte público. Tirar carteira de motorista? Impossível, por causa da prova escrita.

Há quem não consiga ler manuais de instrução de aparelhos, pagar contas online, comunicar-se por e-mail ou preencher a declaração do imposto de renda. Decodificar uma bula de remédio é outro grande desafio.

"Muitas vezes os médicos e farmacêuticos dão instruções verbais de como tomar o medicamento", explica Henning. "É também uma de nossas áreas de colaboração. Trabalhamos com médicos e pedimos que eles passem informações sobre alfabetização e nossos números de telefone para os pacientes afetados, já que confiam neles."

O estudo sobre a baixa alfabetização indica, ainda, que mais de 52% dos afetados têm o alemão como língua nativa, enquanto 47% têm origem estrangeira e aprenderam outro idioma primeiro. Entre estes, 80% são fluentes em leitura e escrita em suas línguas maternas.

Dois terços dos que têm dificuldades de leitura e escrita estão no mercado de trabalho, o que aumenta sua autoestima, "mas os empregos em geral incluem ocupações 'inferiores', como construção ou limpeza", aponta Henning. No entanto, como enfatizam os especialistas, o analfabetismo funcional não tem qualquer relação com falta de inteligência.

A dificuldade de leitura e escrita é determinada por fatores para além da influência dos indivíduos, como é o caso de Christian Schröter, de 52 anos, também um "embaixador do aprendizado". Ele cresceu na antiga Alemanha Oriental em meio a turbulentas relações familiares, tinha dificuldades na escola e deixou os estudos na 10ª série, sem certificado de conclusão. Depois, manteve-se graças a empregos ocasionais, chegou a fazer trabalhos de carpintaria, mas abriu mão de um aperfeiçoamento profissional.

"Nos dias em que eu tinha que escrever um exame, ficava repentinamente 'doente'", recorda. Somente décadas após ter deixado a escola, descobriu que sofria de dislexia. Por 20 anos a esposa assumiu por ele tarefas cotidianas como ler cartas ou preencher formulários. Até que ela adoeceu.

Schröter se viu confrontado com uma ordem judicial que não sabia ler – e foi forçado a abrir o jogo para o juiz. Pouco mais tarde passou a frequentar um curso de alemão e conseguiu aumentar sua capacidade de leitura de 45% para 75%.

Muitas vezes é uma crise que leva as pessoas a mudarem a situação, explica Henning: "Uma mulher ligou para a nossa linha direta, chorando. Ela tinha um bebê e estava desesperada por não poder ler histórias para ele. Ela olhava as imagens e inventava histórias." Através da associação, matriculou-se em cursos de alfabetização.

Schröter também está fascinado com suas novas habilidades, que "fortaleceram minha autoconfiança e melhoraram minha qualidade de vida". E Goldenstein enfatiza: "É preciso se entender que as pessoas não saberem ler e escreverem direito é um grande problema para a sociedade. Isso é também um assunto político."
Deutsche Welle

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