Li, certa vez, um ensaio do escritor italiano Luigi Pirandello em que ele afirma que a vida pode ser inverossímil, a arte não. Pois esta história, por ser real, soará talvez fantasiosa. Para comprová- -la sequer conseguiria avocar o testemunho do protagonista, que jaz numa cova rasa no alto do Cemitério Municipal de Juiz de Fora, interior de Minas Gerais. Nem mesmo saberia localizar os personagens secundários, há muito encobertos pelo pó do tempo. Portanto, cabe empenhar minha palavra de que o aqui exposto busca recompor, da melhor maneira possível, alguns aspectos da biografia de Robert (Bobby) William Clarke. O resultado é uma envergonhada sombra de sua verdadeira trajetória — que possui passagens muito mais insólitas…
As noites de inverno costumam ser bastante frias em Juiz de Fora. Podem tornar-se insuportáveis, caso não se esteja bem agasalhado. Eu vinha de Rodeiro, lugar quente, filho de uma família de sitiantes pobres, e, embora há tempos morando na cidade, não me habituava com a mudança de clima. Naquele segundo ano cursando engenharia, tinha me estabelecido numa pensão barata na parte baixa da rua Batista de Oliveira, que, se durante o dia animava-a forte comércio monopolizado por sírios e libaneses, à noite transformava-se em reduto de pequenos traficantes, malandros e meretrizes. Partilhava o quarto, constituído por dois beliches e guarda-roupa, com dois estudantes, um de direito, outro de odontologia, e um sujeito, pouco mais velho que nós, que consumia os dias à janela, fumando cigarros ordinários e falando sobre projetos irrealizáveis.
Seguia com rigor uma rotina. Pela manhã, incluso na mensalidade, dona Clarice oferecia-nos pão mirrado, no qual lambuzava uma leve camada de margarina, e uma caneca de ágata cheia de café ralo manchado por um pingo de leite. Saía correndo, pegava um ônibus lotado, assistia aulas até o meio-dia, almoçava uma comida insossa e pesada no restaurante universitário, acompanhava com sono algumas disciplinas à tarde. De regresso, conversava com os colegas, repassava lições, lia um romancista russo, minha obsessão naquela época. Perto das onze e meia me dirigia à avenida dos Andradas, onde aguardava, junto com boêmios, desempregados, prostitutas e desvalidos em geral, Bebel servir, à meia-noite, sua famosa porque baratíssima sopa, elaborada com sobras do dia, com que nos refestelávamos.
Em fins de maio, meu corpo percebeu mudanças na paisagem. E quando junho se anunciou, com suas úmidas manhãs brancas e noites azuis e melancólicas, constatei meu despreparo para enfrentar a friagem que se avizinhava. Forrava os pés com folhas de jornal, vestia calça sobre calça, camisa sobre camisa, e ainda assim meus pulmões ardiam com o ar gelado. Possuía apenas uma blusa vermelha de lã, e por isso andava todo o tempo de braços cruzados, buscando aquecer as mãos sob o sovaco.
E foi assim, a tiritar, que me posicionei na fila do Bar da Bebel, antecipando a quentura da Seleta Bodelér, apelido sarcástico para o mesmo caldo grosso anotado em letras góticas na placa preta exposta à porta, nome que Dalcídio Junqueira mudava cotidianamente, exercitando sua verve de poeta em troca da refeição grátis. Em seguida, chegou um homem de ralos cabelos agrisalhados, barriga cirrótica, cachimbo pendurado no canto da boca, carregando uma valise de couro ressecado, quebradiço, em formato trapezoidal, semelhante às utilizadas por representantes de laboratórios farmacêuticos. O que me chamou a atenção é que nada usava sobre a camisa puída. Eu havia descoberto que falar e gesticular diminuíam o desconforto e resolvi puxar conversa. O senhor não sente frio? Ele pousou-me enigmáticos olhos castanhos, declarou, com forte sotaque, Não, para mim isso não é frio, e riu, irônico. Perguntei de onde vinha, Sou inglês, mas de ascendência escocesa, disse, com desmesurado orgulho, o que destoava da condição indigente que partilhávamos naquele momento.
Logo, Bebel deu sinal para que entrássemos e arranjamos uma mesa próxima ao caldeirão fumegante, o que nos garantia um prato bem servido e meio pão — à medida que a madrugada avançava, a concha de Geraldinho, o cozinheiro, ia se tornando avara. Tomamos a sopa calados, sôfregos, sob o olhar fiscalizador de Bebel, que exigia não demorássemos mais que o necessário, liberando lugar para os famintos lá de fora. Depois, saímos a caminhar pela avenida Rio Branco, as vozes represadas pela barreira de edifícios. Percebi que Bobby, havíamos nos apresentado quando na fila, mancava da perna direita e perguntei o que causara aquilo. Ele falou, debochado, Nada, apenas uma granada que explodiu perto de mim… Então, esteve numa batalha?, e tentei adivinhar em que guerra poderia ter se metido, sem atinar com nenhuma. Sim, estive em algumas, e encerrou o assunto. Cruzamos em silêncio o calçadão da rua Halfeld e, na esquina com a Batista de Oliveira, antes de me despedir, perguntei o que, afinal, ele fazia em Juiz de Fora. Baforando o cachimbo, respondeu, Mato ratos.
Luiz Ruffato, "Flores artificiais"
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