Na parede acima do computador, uma grande reprodução do Mardi Gras, de Cézanne, também desgastada: rasgada ao meio e remendada com fita colante.
A mulher na sala ao lado se dedicava com energia a alguma coisa: objetos eram deslocados. Então ressurgiu e ficou olhando a sala.
Não era jovem, como seria fácil imaginar pelo vigor de seus movimentos quando ainda entrevista nas sombras. Uma mulher de certa idade, como diriam os franceses, ou mesmo um tanto mais velha, e pouco apresentável no momento, vestindo calça velha e camisa.
Era uma mulher alerta, cheia de energia, mas não parecia contente com o que via. Mesmo assim, afastou esse pensamento e foi para o computador, sentou-se, estendeu a mão e pôs uma fita para tocar. Instantaneamente a sala se encheu com a voz da Condessa Dié, vinda de oito séculos antes (ou pelo menos uma voz capaz de convencer o ouvinte de que era a Condessa), cantando os seus eternos lamentos:
Devo cantar, queira ou não:
Quanta mágoa por aquele de quem me fiz amiga,
Pois o amo mais que tudo neste mundo…
A mulher, sentada, mãos prontas para atacar as teclas, tinha consciência de sentir-se superior a essa irmã antiga, para não dizer que a condenava. Não gostava disso em si mesma. Estaria ficando intolerante?
Ontem, Mary ligara do teatro dizendo que Patrick estava em pleno turbilhão emocional por ter se apaixonado de novo, e ela respondera com um comentário cortante.
“Ora, Sarah”, Mary ralhara com ela.
E Sarah, concordando, rira de si mesma.
Estava inquieta, porém. Parece ser uma regra que aquilo que se condena nos outros acabe mais cedo ou mais tardeacontecendo com a gente e tendo de ser vivido. Forçada a comer o próprio vômito — sim, Sarah sabia disso muito bem. Em algum ponto do passado havia gravado mentalmente: evite condenar os outros, e cuide de si mesma.
A Condessa Dié era muito perturbadora e Sarah desligou o seu lamento.
Silêncio. Ficou ali sentada, respirando o silêncio. Aquela velha música trovadoresca a perturbava demais. Quase não ouvia outra coisa esses dias, para dar o tom ao que estava escrevendo. Não apenas a Condessa, mas Bernard de Ventadour, Pierre Vidal, Giraut de Bornelh, e outros velhos cantores, para se colocar num estado de… estava inquieta, estava febril. Quando a música a teria afetado assim, antes? Achava que nunca. Mas espere um pouco. Uma vez tinha escutado jazz, principalmente blues, dia e noite ao que parece, durante meses. Mas isso foi quando o marido morreu e a música alimentava sua melancolia. Mas não se lembrava… sim, primeiro tinha sido tomada pela dor, depois tinha escolhido a música adequada a seu estado. Agora era completamente diferente.
O trabalho dessa noite não era difícil. O tom das anotações para o programa estava um tanto duro: isso porque, ao escrever, tinha ficado com medo de se deixar seduzir demais pelo assunto. E estava cedendo à sedução da voz sensual da Condessa — ou da jovem Alicia de la Haye.
Não precisava fazer as anotações agora. Na verdade, tinha se imposto a regra de não trabalhar em casa de noite: regra que não vinha obedecendo nos últimos tempos. Francamente, não vinha mantendo suas próprias normas de equilíbrio e saúde mental.
Ficou sentada, ouvindo o silêncio. Um pardal trilou.
Pensou: vou dar uma olhada naquele poema provençal de Pound; isso, afinal, não se pode chamar de trabalho.
Em cima da mesa havia pilhas de livros de referência, pastas de recortes e, de um dos lados, estantes que subiam até o teto. O livro estava aberto, ao lado do computador.
A mulher na sala ao lado se dedicava com energia a alguma coisa: objetos eram deslocados. Então ressurgiu e ficou olhando a sala.
Não era jovem, como seria fácil imaginar pelo vigor de seus movimentos quando ainda entrevista nas sombras. Uma mulher de certa idade, como diriam os franceses, ou mesmo um tanto mais velha, e pouco apresentável no momento, vestindo calça velha e camisa.
Era uma mulher alerta, cheia de energia, mas não parecia contente com o que via. Mesmo assim, afastou esse pensamento e foi para o computador, sentou-se, estendeu a mão e pôs uma fita para tocar. Instantaneamente a sala se encheu com a voz da Condessa Dié, vinda de oito séculos antes (ou pelo menos uma voz capaz de convencer o ouvinte de que era a Condessa), cantando os seus eternos lamentos:
Devo cantar, queira ou não:
Quanta mágoa por aquele de quem me fiz amiga,
Pois o amo mais que tudo neste mundo…
A mulher, sentada, mãos prontas para atacar as teclas, tinha consciência de sentir-se superior a essa irmã antiga, para não dizer que a condenava. Não gostava disso em si mesma. Estaria ficando intolerante?
Ontem, Mary ligara do teatro dizendo que Patrick estava em pleno turbilhão emocional por ter se apaixonado de novo, e ela respondera com um comentário cortante.
“Ora, Sarah”, Mary ralhara com ela.
E Sarah, concordando, rira de si mesma.
Estava inquieta, porém. Parece ser uma regra que aquilo que se condena nos outros acabe mais cedo ou mais tardeacontecendo com a gente e tendo de ser vivido. Forçada a comer o próprio vômito — sim, Sarah sabia disso muito bem. Em algum ponto do passado havia gravado mentalmente: evite condenar os outros, e cuide de si mesma.
A Condessa Dié era muito perturbadora e Sarah desligou o seu lamento.
Silêncio. Ficou ali sentada, respirando o silêncio. Aquela velha música trovadoresca a perturbava demais. Quase não ouvia outra coisa esses dias, para dar o tom ao que estava escrevendo. Não apenas a Condessa, mas Bernard de Ventadour, Pierre Vidal, Giraut de Bornelh, e outros velhos cantores, para se colocar num estado de… estava inquieta, estava febril. Quando a música a teria afetado assim, antes? Achava que nunca. Mas espere um pouco. Uma vez tinha escutado jazz, principalmente blues, dia e noite ao que parece, durante meses. Mas isso foi quando o marido morreu e a música alimentava sua melancolia. Mas não se lembrava… sim, primeiro tinha sido tomada pela dor, depois tinha escolhido a música adequada a seu estado. Agora era completamente diferente.
O trabalho dessa noite não era difícil. O tom das anotações para o programa estava um tanto duro: isso porque, ao escrever, tinha ficado com medo de se deixar seduzir demais pelo assunto. E estava cedendo à sedução da voz sensual da Condessa — ou da jovem Alicia de la Haye.
Não precisava fazer as anotações agora. Na verdade, tinha se imposto a regra de não trabalhar em casa de noite: regra que não vinha obedecendo nos últimos tempos. Francamente, não vinha mantendo suas próprias normas de equilíbrio e saúde mental.
Ficou sentada, ouvindo o silêncio. Um pardal trilou.
Pensou: vou dar uma olhada naquele poema provençal de Pound; isso, afinal, não se pode chamar de trabalho.
Em cima da mesa havia pilhas de livros de referência, pastas de recortes e, de um dos lados, estantes que subiam até o teto. O livro estava aberto, ao lado do computador.
Envelhecer com graça… é só seguir os marcos do caminho. Pode-se dizer que as instruções estão contidas num roteiro invisível que pouco a pouco vai se tornando legível, à medida que a vida o vai expondo. Então, é só dizer as palavras adequadas. No fim das contas os velhos não se dão mal. O orgulho é uma grande coisa, e as atitudes e estoicismos necessários vêm fáceis, porque os jovens não sabem — isso lhes é ocultado — que a carne murcha em torno de um cerne imutável. Os velhos compartilham ironias próprias a fantasmas num festim, em que um enxerga o outro, invisíveis para os outros convidados, cujas posturas e expressões observam, sorrindo, recordando.
A maioria das pessoas em vias de envelhecimento assinaria embaixo desse conjunto de frases plácidas, cheias de autorrespeito, sentindo-se bem representada e até mesmo defendida por elas.
É, concordo com isso, pensou Sarah. Sarah Durham. Um nome bem sensato para uma mulher sensata.
O livro onde encontrou essas frases fora comprado na banca de uma feira ao ar livre, memórias de uma moça da sociedade antes famosa pela beleza, escrito em sua velhice e publicado quando a autora era quase centenária, vinte anos atrás. Estranho ter escolhido esse livro, pensou Sarah. Houve tempo em que nem abriria um livro escrito por um velho: nada a ver com ela, pensaria. Mas existe algo mais estranho do que o modo como os livros que refletem nossa condição ou estágio da vida acabam se insinuando em nossas mãos?
Afastou o livro, pensou que os versos de Pound podiam ficar para depois, e resolveu gozar uma noite em que nada se devia esperar de sua parte. Uma noite de abril, o céu ainda claro. Aquela sala era calma, geralmente calmante e, assim como os três outros cômodos do apartamento, guardava trinta anos de memórias. Salas onde se viveu muito tempo acabam parecendo praias sujas: difícil saber de onde veio este ou aquele caco.
Doris Lessing , "Amor, de novo"
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