segunda-feira, novembro 28

Es-to-col-mo

Na manhã em que o velho escritor entrou em agonia e o padre foi chamado para a extrema-unção, houve um momento em que a família chegou a acreditar numa recuperação milagrosa. O escritor, de quem não se ouvia uma palavra fazia semanas, disse apaixonadamente uma e, como se receasse que não a tivessem entendido, repetiu-a mais claramente ainda: Es-to-col-mo.

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Sonhou que um vento noturno, vindo do leste, punha um haicai em cada galho de sua ameixeira e que os vizinhos, invejosos, a derrubavam com seus machados. De manhã, ao abrir a janela, viu que a ameixeira estava viva, mas o vento havia esparramado todas as ameixas pelo quintal.

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Os poetas antigos tinham pelo menos dez cisnes em suas obras completas.

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Amor, meu doce tirano, sob teu domínio me ponho, aos teus grilhões não me oponho e do teu jugo me ufano.

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Acho curiosa uma nomenclatura usada em catálogos de artistas plásticos. Quando se trata de obras não vendidas, diz-se que pertencem ao acervo do autor. No caso de escritores, não há eufemismos: são encalhes, mesmo. Tenho em meu arquivo pelo menos duas dezenas de livros desse tipo, entre contos para adultos e novelas juvenis. Bem verdade é que jamais me empenhei seriamente em torná-los viáveis. A maior parte deles nunca saiu uma vez sequer de casa. Ficam todos como meninos no quarto mais sombrio de um orfanato, e a cada ruído estranho se abraçam com mais força.

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Depois de uma noite de tempestade, dona Amara foi ao quintal e surpreendeu-se ao encontrar, onde até a véspera havia uma rosa na roseira, uma estrela derrubada pela feroz ventania.

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Tantas vezes o jarro foi à fonte que já não sabe se hoje é hoje e se ontem foi ontem.

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Espero ainda alguma coisa da poesia. A recíproca certamente não é verdadeira.
Raul Drewnick

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