Subindo os degraus da entrada, um odor de mofo mole e denso dá as boas-vindas aos leitores dessa biblioteca. É um cheiro da reunião de anos de papel guardado e compartilhado, suor, casa alheia, respirações, tato de mãos e saliva de boca resguardados por estreitas janelas lacradas. Abrem-se as portas automaticamente, pego o elevador, subo, e sinto-me imersa em um episódio de ficção científica, explorando lado a lado com Captain Kirk e Mister Spock planetas inóspitos de configuração bizarra e línguas raras. Enquanto a maior estrela do sistema arde, adentrando em lâminas de calor pelo espaço atapetado e repleto de poltronas rígidas, perscruto por corredores de estantes semiabandonadas. Em exploração a esse universo, campo virgem de livros intocados, seleciono algumas obras ao alto, realizando um registo de estudante, de livros sem história. É como um sebo às avessas: os livros são velhos, mas todos novos, sem traças nem traços, intocados, e não podem ser vendidos, talvez apenas emprestados. Um exemplar de capa preta, com motivos coloridos, solta um grande estalo ao ser aberta – ninguém nunca o leu nem pegou emprestado. Seria tal estampido mais um gemido de dor do que o acomodamento das folhas impressas, desde o século passado? Reparo na antiga tabela de devoluções e empréstimos, disposta na última página: não há qualquer apontamento. Já de outro conjunto de exemplares com lombada encadernada em tons castanho-avermelhados, uma camada espessa de pó sai voando, assim com um farelo de couro: de tão compactadas, as capas se acabaram grudando feito dura cola. Terei eu a complacência em desbravar esses territórios desconhecidos sem que lhes fira a substância, nem lhes interfira na morada? Sim, pois aqui não há quaisquer documentos adicionais, autógrafos nem dedicatórias, bilhetes de metrô nem marcas de café, dispostos entre as páginas, para uma possível arqueologia de humana zoologia pessoal. Esses livros sem história, assim duramente enfileirados como relíquias de uma nave destroçada, pareceram-me mais fascinantes e charmosos do que os livros com muita história.
Elisa Andrade Buzzo
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