quarta-feira, novembro 30

Os ciganos

Na memória, tenho imagens paradas de um casamento de três dias. Lembro-me das roupas garridas das mulheres, cheias de folhos, fazenda brilhante, cetim quase de certeza, sem vergonha do vermelho, do amarelo, do verde vivo. Lembro-me dos homens já de camisa aberta, a festejarem em voz alta, a conviverem de uma maneira que eu não conhecia com aquela cumplicidade de família imensa, como se todos fossem irmãos uns dos outros. Três dias durou esse casamento. As celebrações esmoreciam um pouco de manhã. Eu passava acompanhado por outros rapazes, abrandávamos o passo para olharmos ao longe, para tentarmos perceber o que estava a acontecer. Mas, logo a partir de almoço, com as mulheres de um lado e os homens do outro, a festa começava a animar. Ao fim da tarde, princípio da noite, atíngia o auge. Lembro-me das danças que levantavam pó na terra, as mulheres muito maquilhadas a baterem com sapatos finos na terra seca, os homens na fronteira de perderem a compostura, com a ponta do cinto solta das presilhas, como a cabeça de uma serpente, também a dançarem, também a baterem com sapatos novos na terra. E os rapazes da nossa idade, claro. É deles que me lembro melhor. Foram eles que nos chamaram para entrar, foram eles que nos puxaram pelo braço quando fizemos tenção de recusar, foram eles que insistiram, que nos foram buscar comida, que nos deixaram à vontade.




Conhecíamos esses rapazes das temporadas que passavam na escola. Não tinham livros, a professora emprestava-lhes um caderno e sentava-os ao lado de alguém. Sabiam pouco de letras e da maneira como a professora dizia as coisas, o que sabiam de números não se escrevia no quadro com giz, mas eram os reis do recreio. Passávamos esse tempo a rodeá-los e ora fazíamos perguntas, ora ouvíamos as notícias mais incríveis. Eles conheciam o mundo, estavam ali apenas de passagem. Aproveitávamos ao máximo o tamanho da sua novidade.


Esse casamento de três dias juntou muitas famílias ciganas, vieram de todo o Alentejo, das Beiras, da Extremadura e da Andaluzia. Teve lugar no terreno em frente ao correio que, nessa época, tinha muito poucas construções em volta. Era um dos dois ou três lugares onde os ciganos costumavam montar acampamento. Os burros e as mulas ficavam presos aos troncos das oliveiras, aproveitavam esse descanso resignado, até ao momento em que fossem chamados a levar a carroça. E tanto podiam seguir pelas ruas da vila, o velho Durico rodeado por montes de camisas, a fumar a ponta de um cigarro que quase lhe queimava os lábios, a pele do rosto encarquilhada, os olhos quase fechados, o velho Durico a descer as ruas muito devagar e, às vezes, a ser rodeado por mulheres que tratava por freguesas. Ou esses burros e essas mulas podiam avançar por estradas nacionais, a puxar a carroça carregada, objetos empilhados, panelas, baldes, sacos cheios, e os homens, as mulheres e as crianças sobre esse monte, e os cães a ladrarem aos carros que se demoravam por um instante atrás deles antes de os ultrapassarem.

Quando saí da minha vila, deixei de conhecer ciganos. Da mesma maneira, deixei de conhecer os meus vizinhos. Este é um lugar onde as pessoas não dizem bom dia quando se cruzam na rua. Para quem não conheça outra realidade, parece que o mundo é todo assim, habitado por desconhecidos. Há poucas semanas, perto de Estremoz, passei por uma carroça exatamente igual às da minha infância.

Nunca tive medo de ciganos. Apesar da maneira como, muitas vezes, via essa palavra ser utilizada: como uma ameaça. Quando éramos crianças, os meus amigos e eu sabíamos que os ciganos não eram iguais a nós, bastava-nos reparar em certos detalhes para sabermos isso. Mas essa diferenças não nos incomodavam. Sabíamos que se encontra sempre diferenças nas pessoas que apenas se vêem à distância e, ao mesmo tempo, porque sabíamos que os ciganos eram iguais a nós, bastava-nos conversar com eles para ter essa certeza absoluta.
José Luís Peixoto

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