Havia na minha cidade uma pequena praça mal iluminada, e nessa praça um circo. O anjo da guarda ainda não me havia abandonado — eu era puro de alma e corpo — e me apaixonei perdidamente por uma menina da trupe, que era loura e trabalhava no trapézio. Só não foi o meu primeiro amor na vida porque antes já havia amado Clara, mas foi o mais distante e o mais impossível.
Daí nasceu, se não me engano, a minha vocação de clown — para muitos frustrada, para mim sempre vigilante — e que um dia explodirá de mim como fogos de artifício, pasmando incrédulos e iluminando os céus. Eu, o clown Barnabó, ex-burocrata, ex-espião comunista, ex-sentenciado à cadeira elétrica — ex-tudo, enfim. Clown simplesmente, o que é demais.
E é esse clown que agora me faz suportar com a devida filosofia esta prova de fogo a que me submetem os carrascos de todos os tempos, ao tentarem arrancar-me a verdade, que em mim está bem à flor da pele. Se eu vivesse no tempo de Pilatos certamente seria crucificado hoje mesmo; mas os tempos hoje são outros, e se contentam em deitar-me numa cama confortável, com um capacete alemão de contrapeso. O objetivo, porém, é sempre o mesmo — a Verdade — como se eu tivesse uma única verdade e não muitas, todas à flor da pele e lutando entre si como num campo de batalha. É verdade que nem todos leem a minha verdade plural, escrita em linguagem simples, e eu não me sinto obrigado a dizê-la de viva voz, como quem recita uma lição de catecismo; eles que me leiam sem complicações, como se eu fora apenas um homem e não um poço de hieróglifos.
Aliás, estou decidido a calar-me agora mais do que nunca, a fim de não proporcionar aos meus algozes o espetáculo de uma covardia que não tenho e que jamais será minha. Torturem-me até a mutilação, ponham-me nu quantas vezes queiram, eu que já vivo nu sem que eles o percebam; deixem-me incomunicável em minha cela como se eu fora um anacoreta, eu que de fato sou um oásis cercado de deserto por todos os lados; — força nenhuma me fará abdicar de minha força ou mesmo de minha fraqueza, como nenhum instrumento de tortura me fará sair da minha pele, que afinal é a minha cidadela. Posso gritar, e acredito mesmo que venha a gritar muitas vezes, já que para isso foi dado o grito ao homem e o grito é apenas uma forma de defesa como outra qualquer; jamais, porém, me farão dizer A quando é 8 ou J que eu deva dizer, nem me crucificarão impunemente, sem que eu lhes responda com um riso de escárnio na boca ensanguentada.
As nuvens que pairam no céu, negras e pesadas, são um signo do tempos difíceis que estamos vivendo, e disso não parecem aperceber-se os meus companheiros de solidão, que continuam inocentes e tranquilos como antes, como reses num matadouro. (Comem o seu pão com leite ou a sua sopa de verduras como se estivessem apenas num internato, e à hora do recreio vão discutir seus pequenos problemas no pátio sombrio ou ensolarado, como crianças, que não soubessem que Herodes voltou a reinar sobre a terra e que Pilatos cada manhã lava as suas mãos manchadas de sangue, com o ar mais compungido deste mundo). E não serei eu quem lhes irá tirar essa inocência perfeita e obrigá-los a viver comigo este cativeiro que desde ontem é a minha Verdade — ou uma delas, pelo menos — revelando-lhes o que é melhor não saber e que não lhes traria proveito nenhum. Continue o fabricante de bilboquês a fabricar seus bilboquês revolucionários mas inofensivos à Nova Ordem constituída, que no fundo é a mesma Nova Ordem de sempre, nem mais nem menos; empenhe-se o futuro filósofo Vinícius, ou que nome tenha, em recitar cada vez mais seus versículos bíblicos, ou suas tiraras à Anacreonte, enquanto devora com os olhos os potentes quadris da esposa do subgerente, até que esta o agarre um dia com violência e o arraste para o seu leito de Procusto, como o fez a mim que também me deixara levar por seus encantos; petrolize cada vez mais, com suas lentes de longo alcance, o amulatado e ingênuo Abdias, inimigo número um dos prestativos norte-americanos, já que isso o distrai e o faz dono de um invejável lirismo, ele que não sabe fazer poesia de outra forma; disfarcem-se enfim como possam o untuoso legado pontifício e seu discretíssimo secretário, às voltas com sua contabilidade divina ou metafísica, já que isso não lhes prejudica e muito menos a mim, que de metafísica entendo apenas o suficiente para saber escrever-lhe o nome. Em tempo algum sairá de minha boca a verdade terrível que os lançaria em pânico e os faria retornar à primeira infância — essa mesma verdade que a mim me incutiram quando tentavam arrancar-me a que não existia, a golpes de martelo no cérebro e com todo o aparato bélico de uma eletrocução. Eles são ou parecem felizes em sua aleatória inocência — e o maior dos crimes ainda é matar a inocência onde quer que ela esteja, ainda quando a isso nos anime a melhor das intenções, que nem sempre é tão boa quanto nos parece.
Campos de Carvalho, "A lua vem da Ásia"
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