Se escrevo, é justamente porque me interessa saber quem sou. Escrevo desde sempre - quase posso dizê-lo: antes de escrever no papel escrevia no meu vazio já povoado de palavras , de imagens . Foi esse o meu escreviver: procurar-me . No entanto, em dado momento da vida, no final da década de 50, a importância que os outros cada vez mais assumiam para mim reduziu algum tanto a importância que me atribuía. Tornei-me , de certo modo, um elo de uma cadeia que passa ao meu lado, que eu toco, que eu sinto, que vem dos confins da História e se projecta no futuro da Humanidade. Não me tornei sereno, não encontrei resposta para todas as perguntas, continuei a discutir comigo, com as minhas sombras, no meu estreito espaço humano, mas acompanhado, isto é, numa escala diversa. Tem menos importância agora quem sou do que aquilo que faço e não tanto o ato em si como o seu efeito, a sua ressonância num mundo em transformação. É claro que a escrita , a minha escrita desobedece a todos os programas. Por isso continua a ser para mim apaixonante escrever, medir-me com a palavra, através dela acertar-me com o projeto que vivo , sem trair as raízes que já dispersei no espelho do inconsciente, a minha escrita. E aí está: o que ainda espero da vida, afinal, é poder escrever vivendo, com o corpo a que chamamos espírito ( repensando o mundo em mim , todos os minutos, todos os segundos do tempo de que ainda disponho).
Urbano Tavares Rodrigues, "O Gosto de Ler"
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