Quando a criança pequena brinca de esconder, cobre os olhos e acredita que se tornou invisível. Talvez aquela família sem casa tentasse o mesmo, diante de minha janela, no final da tarde: com seu barco-charrete ancorou na marquise em frente e envolveu toda a bagagem em um plástico negro.
Chovia, e o grupo permaneceu longo tempo acomodado sob o telhado improvisado, com suas crianças e cães em torno de uma pequena fogueira, quem sabe lembrando o fogão e a hora do jantar. Do meu observatório, via somente as pernas flexionadas, pois os rostos permaneciam ocultos na sombra da cobertura.
As dimensões do acampamento chamaram a atenção da polícia, que fazia a ronda e parou a viatura, mas logo percebeu que aquela gente era inofensiva, apenas de pouca sorte.
Quando fui deitar, notei que também eles se preparavam para dormir. Tinham apagado o fogo, aproximado a carroça de catar papelão e coberto inteiramente tudo e todos, dando nova forma à bolha de plástico.
A chuva continuava, insistente, e de meu quarto podia ouvir de quando em quando suas vozes, naquelas conversas pausadas que a gente costuma ter quando está quase adormecendo.
Na manhã seguinte, ao abrir a janela, vi que já não havia qualquer vestígio de chuva ou da existência daqueles nômades. Partiram cedo, levando prole e pertences, inclusive as tiras de papelão que serviram de piso e cama, isolando os corpos do frio do cimento úmido, e o precioso plástico. Ou, quem sabe, tenham mesmo conseguido ficar invisíveis, como quer a indiferença da cidade.
Madô Martins
Nota da autora: Crônica foi esboçada por volta de 2001, mas permanecia inédita. Após tanto tempo, continuam iguais os sentimentos e a situação dos desfavorecidos, o que lamento.
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