sexta-feira, novembro 4

Antropofagia

Um amigo falou-me de uma banca de doutorado de que participou. Era sobre os índios Ianomâmi, mais especificamente, sobre seus rituais antropofágicos. Os rituais antropofágicos, nós os sentimos como primitivos e repulsivos. Mas os Ianomâmi têm explicações diferentes. “Vocês se chamam de civilizados e nos consideram selvagens por devorarmos os nossos mortos. Vocês não amam os seus mortos. Fazem sepulturas profundas para enterrá-los e para serem devorados pelos vermes. Mas nós os amamos. Queremos que eles vivam. E há uma única forma de fazê-los viver: se eles viverem em nós, se eles forem incorporados ao nosso sangue e à nossa carne. Mas, para que isso aconteça, para que eles continuem vivos, é preciso que nós os comamos.”


Murilo Mendes escreveu: “No tempo em que eu não era antropófago, isto é, no tempo em que eu não devorava livros – e os livros não são homens, não contêm a substância, o próprio sangue do homem?” (A idade do serrote).

Há autores que li sem que os tivesse amado. Não os devorei. Suas ideias ficaram guardadas na minha cabeça. Outros, que amei, devorei. Passaram a fazer parte do meu corpo. Aquilo que se come não continua o mesmo, depois de comido. É assimilado – fica semelhante a mim. Batatas, cenouras e carnes, uma vez comidas, deixam de ser batatas, cenouras e carnes. Passam a ser parte de mim mesmo, minha carne, meu sangue. Assim acontece com os autores que devorei e cito. Só os cito porque se tornaram parte da minha carne e do meu sangue. Eu os conheço “de cor” – isto é, como parte do meu coração. Deixaram de ser eles. São eu. A eucaristia é uma metamorfose alquímica pela qual uma substância é transformada em outra: o pão e o vinho se tornam carne e sangue. Quem come o pão e bebe o vinho come a carne e bebe o sangue. Eucaristia é antropofagia. A essa magia os teólogos medievais davam o nome de transubstanciação: uma substância se transforma em outra. Nietzsche e Guimarães Rosa falam sobre uma alquimia parecida, em que o sangue é transformado em palavra. Quem lê, bebe o sangue de quem escreveu. O ritual da leitura é, como a eucaristia, uma refeição antropofágica.
Rubem Alves, "Do universo à jabuticaba"

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