domingo, novembro 27

Incenso

Na serenidade, passa o tempo sem pressa. Num instante sentido, num fio de fumo, é possível encontrar a cartografia de todos os outros instantes, longos ou fugazes. Na serenidade, passa a própria vida.

É um fio delicado de fumo que se enrola sobre si próprio, que se desenha no ar, que se entrança. Logo depois, desfaz-se numa forma cada vez mais desgovernada, a alastrar-se e a dissolver-se na pequena nuvem de fumo que paira na sala. Aqui, neste mundo cingido por paredes, desloca-se como um grande corpo, espécie de monstro a dirigir-se infinitamente na direção dos livros da estante, mas que nunca lá chega de facto.

Às vezes, o tempo passa à velocidade de incenso a queimar. Lento, mas constante. Seguro, como um sopro. A partir de um pequeno ponto incandescente ergue-se uma linha de curvas ligeiras, elegantes. E os pensamentos sucedem-se a essa velocidade. É sempre assim. Os pensamentos seguem a velocidade do tempo que interiorizamos. E, às vezes, o tempo passa sem pressa, como incenso a queimar.

Nos templos, como no Templo de A-Má, há paus de incenso que homens e mulheres seguram entre as mãos e que inclinam diante do altar ao ritmo com que inclinam todo o corpo em vénias repetidas. Depois, quando os espetam em pequenos potes, começa a sua combustão serena. O fumo sobe ao céu, indiferente às pessoas que se aproximam ou se afastam. E quando soa o gongo, o fumo segue o seu caminho ascendente com a mesma segurança com que a vibração se propaga. Para cima ou para dentro, um instante contínuo que tranquiliza.

Há também os incensos em espiral, pendurados debaixo de telheiros, esticados como molas. No interior, têm um papel com um pedido escrito, caligrafia chinesa. Muito devagar, a sua pequena brasa vai ardendo, cumprindo voltas, como se subisse a lenta estrada de uma montanha. Demora bastante, é um caminho que chega a parecer que não vai continuar. Talvez se detenha em algum obstáculo, talvez não encontre forças.

Mas continua sempre.

É exatamente assim o tempo a que me refiro, esse tempo que passa à velocidade de incenso a queimar. Transporta em si a certeza de que não irá ser interrompido por qualquer repente, bom ou mau. É um tempo de descanso, de reflexão, valioso para respirar. E, toda a gente sabe: no momento em que vivemos, é tão necessário respirar, faz tanta falta.

Aqui, onde estou a escrever estas palavras, esse tempo paira lentamente. Se me levantasse desta cadeira, creio que me alcançaria o peito. É mais ou menos a essa altura que avança seguro na direção das estantes, como uma vontade branda ou um desejo antigo.

Por sua vez, nas estantes, há o tempo dos livros. Esse avança a outra velocidade. Talvez mais lenta ainda, chega a ser possível parar o tempo nessas páginas. Mas também é possível apressá-lo. No interior de uma única linha, podem passar dez anos. Os livros são, cada um deles, salas parecidas com esta. O tempo que cada livro contém voga a uma velocidade própria, constrangida por critérios próprios e, em simultâneo, volúvel, livre.

Aqui, sob as minhas narinas, no ar que inspiro, o incenso. Podemos também medir uma velocidade a partir do seu perfume, fumo perfumado. No ar desta sala, sobe um fio delicado de fumo. É contemporâneo de mil templos no outro lado do mundo. Na comparação entre este a velocidade deste e desse incenso, a distância não guarda qualquer relevância ou significado. Existe o tempo deste fumo e destas palavras, ascende lentamente na sala exterior que nos rodeia e na sala interior que contemos. Neste tempo, é possível encontrar todos os outros tempos. Basta ser capaz de concebê-los.

José Luís Peixoto

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