quarta-feira, janeiro 31

No deserto

 


Sagrada chuva

O menino quer virar a cabeça, mas os soldados o obrigam a olhar. Fernando vê como o verdugo arranca a língua de seu irmão Hipólito e o empurra na escada da forca. O verdugo pendura também dois tios de Fernando e depois o escravo Antônio Oblitas, que tinha pintado o retrato de Túpac Amaru, e o corta a golpes de machado; e Fernando vê. Com correntes nas mãos e grilhões nos pés, entre dois soldados que o obrigam a olhar, Fernando vê o verdugo aplicando o garrote vil em Tomasa Condemaita, mulher do cacique de Acos, cujo batalhão de mulheres tinha dado tremenda tunda no exército espanhol. Então sobe ao tablado Micaela Bastidas e Fernando vê menos. Seus olhos ficam enevoados enquanto o verdugo busca a língua de Micaela, e uma cortina de lágrimas tapa os olhos do menino quando sentam a mãe dele para culminar o suplício: a argola que se aperta não consegue sufocar o pescoço fino e é preciso que enrolando laços no pescoço, puxando de um e outro lado e dando-lhe chutes no estômago e nos peitos, acabem de matá-la.

Fernando já não vê nada, já não houve nada, Fernando que há nove anos nasceu de Micaela. Não vê que agora trazem o seu pai, Túpac Amaru, e o amarram às cinchas de quatro cavalos, pelos pés e pelas mãos, a cara para o céu. Os ginetes cravam as esporas rumo aos quatros pontos cardeais, mas Túpac Amaru não se quebra. Levam-no pelo ar, parece uma aranha; as esporas rasgam os ventres dos cavalos, que se erguem em duas patas e se arremetem com todas as forças, mas Túpac Amaru não se quebra.

É tempo de longa seca no vale de Cusco. Ao meio-dia em ponto, enquanto lutam os cavalos e Túpac Amaru não se arrebenta, uma violenta catarata cai de repente do céu: tomba a chuva para valer, como se Deus ou o Sol ou alguém tivesse decidido que esse momento bem merece uma chuva dessas que deixam o mundo cego.

Eduardo Galeano, in Mulheres

A palavra

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito — como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.

Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.


Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento — e depois esqueci.

Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol… mas o canário não cantava.

Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven — e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?

Alguma coisa que eu disse distraído — talvez palavras de algum poeta antigo — foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.
Rubem Braga

Arrependimento das palavras

Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pêlo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.

Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois, o tempo. Sempre o tempo como uma brisa. Uma aragem suave, mas definitiva, a empurrar-me os sentimentos, a deixá-los lá ao fundo e a mostrar-me na distância que eram pequenos, muito pequenos e sem valor. E sempre só a solidão. Sempre. Eu sozinho, a viver. Sozinho, a ver coisas que não iriam repetir-se; sozinho, a ver a vida gastar-se na erosão da minha memória. Sozinho, com pena de mim próprio, ridículo, mas a sofrer mesmo. Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. Muitas vezes disse amo-te, mas arrependi-me sempre. Arrependi-me sempre das palavras.

José Luís Peixoto, "Uma Casa na Escuridão"

terça-feira, janeiro 30

Passeio da manhã

 


Viver sem medo

Os homens começaram a construir casas para se protegerem dos perigos. Havia os perigos do tempo, chuvas, frio, sol, vento. Havia os perigos dos bichos e dos perigos dos homens. As casas começaram a ser construídas para que, dentro delas, as pessoas não tivessem medo. Primeiro, as cercas, paliçadas, muros. Depois, as paredes fortes. E as portas e janelas que se abriam durante o dia e se fechavam durante a noite. Logo os homens perceberam que sua segurança em casas isoladas era muito precária. Começaram a construir cidades. As cidades medievais eram verdadeiras fortalezas, cercadas por muralhas. Nelas só se podia entrar passando por uma gigantesca porta guardada por soldados. As casas pequenas onde moravam as famílias passaram, assim, a ser protegidas pelas casas grandes, a cidade. Com isso as pessoas podiam andar tranquilas pelas ruas: as feras e os criminosos ficavam do lado de fora. Perigoso, mesmo, era viajar. Nas viagens não havia o que protegesse os viajantes. E podiam também dormir tranquilas, sabendo que havia muros e guardas que as protegiam.

Isso era possível porque as cidades eram pequenas. Quando cresceram e ficaram grandes demais, ficou impossível protegê-las com muros. As cidades se abriram então a todos. Coisa sem dúvida democrática. Mas o resultado foi que ficou impossível controlar a entrada e a saída de pessoas. Tanto os amigos quanto os malfeitores passaram a entrar e sair livremente. As pequenas casas ficaram, então, sem a proteção das muralhas e dos portões. A segurança passou a depender da polícia que, nessa nova situação, tinha por dever exercer as funções anteriormente exercidas pelas muralhas e portões: impedir a ação da violência criminosa.

Durante muito tempo isso funcionou bem. Não funciona mais. A casa grande está cheia de medo. A casa pequena está cheia de medo. As pessoas passaram a fugir dos espaços da cidade. Antigamente as famílias saíam às noites para simplesmente passear pelas ruas, praças e jardins. Era gostoso e tranquilo. Hoje ninguém pensa mais nisso. É mais seguro ficar em casa. A cidade se esvaziou. Ficou deserta. Lugar de perigo. É mais seguro ir passear no shopping. Com isso as cidades se degradam.

Um amigo meu me contou, horrorizado, o que lhe aconteceu em Recife. Ele queria atravessar uma ponte, mas a pessoa que o acompanhava o advertiu: “Não atravesse aquela ponte. Ela está cheia de crianças.” Até as crianças passaram a dar medo. As crianças de hoje não são como as de antigamente: elas se tornaram aprendizes do crime.

Os ricos tentaram reproduzir o modelo medieval das cidades fortificadas. Fecharam-se em condomínios guardados e edifícios de segurança máxima. Inutilmente. Não há muro, porta ou guarda que seja capaz de deter os criminosos. Hoje o crime é um dos negócios mais rendosos: fora das redes do fisco, fora da rede das punições. A impunidade do crime se tornou num incentivo ao crime. Por que trabalhar num emprego de oito horas que paga dois salários mínimos se resultado muito mais rendoso pode ser obtido numa ação de poucos minutos? O lucro vale o risco.

Eu amo a cidade, minha casa grande. É detestável ter medo de sair à noite, a pé, e ter de ficar em casa. Tenho saudade dos tempos em que as pessoas punham cadeiras na calçada para conversar. Tenho saudade dos tempos em que os namorados podiam namorar nos jardins. Jovem, eu caminhava do Seminário Presbiteriano, à avenida Brasil, até a estação ferroviária da Paulista, às cinco da manhã. Eu era a única pessoa na rua. O único ruído que se ouvia era o ruído dos meus passos e o apito dos guardas noturnos. Eu não tinha medo. Caminhava cantando: “A noite termina, o dia já vem, a estrela da alva não deve tardar...”

No momento os bandidos estão levando a melhor sobre a polícia. E o fato é que o povo nem liga muito, porque não confia também na polícia. Todo mundo sabe dos acordos entre polícia e bandidos. O povo está abandonado à sua própria sorte. Não há para quem reclamar. De que adianta fazer a queixa se se sabe que ela é inútil? Se nem os assassinos são presos, que dizer dos ladrões de cartões de crédito, bolsas e toca-fitas? A querida “vozinha”, tia Alice, que hoje está completando noventa anos, teve seu cartão de banco roubado na agência da Caixão Econômica e só deu por isso quando descobriu que as economias que fizera durante toda a sua vida não mais se encontravam em sua conta.

Não quero um prefeito que prometa segurança. Essa promessa não pode ser cumprida. Mas quero um prefeito que prometa lutar por ela. A primeira condição para a renovação de Campinas é que ela se torne um espaço onde se possa caminhar sem medo.

Rubem Alves, "Se eu pudesse viver minha vida novamente"

Clássico não tem idade

Clássico não é um livro (repito-o) que possui necessariamente tais ou tais méritos. É um livro que as gerações dos homens, motivadas por razões diversas, leem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade
Jorge Luís Borges

Em busca das palavras

Quem me dera encontrar palavras fortes,
recheadas de coisas e de sons,
tesouros ocultos em caixa-forte,
agrestes com suas cores e tons,
palavras sexuadas e gulosas,
capazes de fremir e de dar fruto,
palavras destemidas e afrontosas,
visando o relativo e o absoluto,
palavras cheias de escuro e de luz,
recheadas de amor e tempestade,
com passada que namora e seduz,
palavras que ocultam mais de metade,
mas dizem que baste para assustar,
palavras bem sedentas de tumulto,
feitas somente para magoar,
cheiinhas, para o caso, de insulto,
palavras que assassinam o canalha,
mas sabem abençoar S. Francisco,
palavras afiadas como navalha,
que, do pescoço infame, fazem petisco,
palavras que são fogo e que queimam,
palavras que ameaçam e cumprem,
palavras que desfloram e que teimam,
palavras que os lordes da guerra estuprem,
palavras fortíssimas, necessárias,
duras, fortes, doces, imprescindíveis,
palavras clássicas, bem centenárias,
que tornem os nossos sonhos possíveis!

Eugénio Lisboa 

A verdadeira história do best-seller do século 14

É possível confiar em um homem que afirma ter visto um unicórnio na ilha de Sumatra, na Indonésia?

Esta e outras questões igualmente válidas vêm lançando dúvidas sobre a confiabilidade dos relatos de Marco Polo (1254-1324), desde que o livro As Viagens de Marco Polo se tornou um best-seller, no século 14.

A obra foi traduzida para dezenas de idiomas, copiada à mão em incontáveis manuscritos e era disponível em qualquer local sofisticado da Europa.

O livro de Marco Polo é o primeiro relato europeu sobre a Rota da Seda. Suas histórias são repletas de maravilhas, especiarias, ouro e pedras preciosas.

Elas também descrevem hábitos sexuais extravagantes e fascinantes estratégias de guerra. Tudo isso faz com que a leitura do relato de viagem seja um verdadeiro prazer — mas também, em parte, algo "difícil de acreditar", como observou um copista particularmente escrupuloso ao lado da sua cópia.

Mas não é preciso ser tão cético. Atualmente, 700 anos depois da morte de Marco Polo, no dia 8 de janeiro de 1324, podemos dizer com bastante certeza que o famoso comerciante, explorador, escritor e antropólogo autodidata veneziano, de fato, viu um unicórnio — ou, pelo menos, que ele não teria mentido a respeito (veja ao final).

Marco Polo' detalha na corte do imperador mongol Kublai Khan, neto de Gengis Khan

"Veneza era a Nova York do mundo da época", segundo o historiador italiano Pieralvise Zorzi. Sua família tem raízes que remontam aos tempos de Marco Polo e mais além.

A cidade era uma metrópole multicultural e receptiva — um centro comercial vibrante que conectava o Ocidente ao Oriente e onde a única religião verdadeira era o comércio. E a família Polo se destacou nesta atividade.

O pai de Marco Polo, Niccolò, e seu tio, Matteo (Maffeo, em dialeto veneziano), tinham um palácio muito próximo a onde hoje fica o apartamento de Zorzi no Grande Canal de Veneza.

Eles também mantinham escritórios em Constantinopla (hoje, Istambul, na Turquia), mas sua perspicácia os levou a fechá-los pouco antes que os gregos tomassem a cidade e expulsassem os venezianos.

Niccolò e Matteo Polo venderam tudo na hora certa e saíram para o Oriente, em busca de novos mercados. Eles comercializaram seda, especiarias, pedras preciosas e a cobiçada glândula de um pequeno animal, o veado-almiscareiro, usada no preparo de perfumes.

Eles voltaram para Veneza depois de alguns anos e, na sua segunda viagem à China, em 1271, levaram Marco Polo, então com 17 anos de idade.

Segundo o relato de Marco Polo, eles viajaram por três anos ao longo da Rota da Seda, a partir de Acri (hoje, em Israel). Eles cruzaram o Oriente Médio e boa parte da Ásia Central, até a corte do imperador mongol Kublai Khan (1215-1294), neto de Gengis Khan, em Khanbaliq (hoje, Pequim, na China).

Os viajantes passaram cerca de 20 anos na China, fazendo negócios e trabalhando como uma espécie de embaixadores do governo local.

A família Polo voltou à Europa via Sumatra e ilhas Andaman, no Oceano Índico. Eles contornaram a Índia pelo mar até chegar a Áden (hoje, no Iêmen), Istambul e, finalmente, Veneza.

Quando os três comerciantes chegaram, Marco Polo estava na casa dos 40 anos. A lenda conta que, quando eles bateram à porta do seu palácio, o servo perguntou quem era e eles responderam, no dialeto local, "i paroni" ("os donos").

Mas, um ano depois, Marco Polo foi preso. Ele foi capturado pelos genoveses em uma das batalhas entre as cidades marítimas rivais de Veneza e Gênova.

Na prisão, ele teve a sorte de conhecer o escritor e editor Rustichello de Pisa, que percebeu o potencial literário do relato de Marco Polo sobre um mundo que, na época, era bastante desconhecido dos europeus. Eles então escreveram a história.

O livro foi um sucesso. O texto era tão envolvente que foi copiado inúmeras vezes e traduzido para diversos idiomas.

Ao longo dos séculos, As Viagens de Marco Polo se tornou um enigma perfeito para os filólogos. Afinal, a versão original logo se perdeu e ficamos com dezenas de traduções feitas com base em outras traduções – e nenhuma delas era necessariamente precisa.

Eugenio Burgio estuda as obras de Marco Polo na Universidade de Veneza Ca' Foscari mais ou menos pelo mesmo tempo em que o viajante veneziano ficou fora de casa. Ele oferece um exemplo da jornada percorrida pelo livro.

Uma versão em francês poderia ser traduzida para um dialeto do norte da Itália, da região entre Emilia Romagna e o Vêneto. Esta versão, por sua vez, poderia ser traduzida para o dialeto da Toscana. E da Toscana, alguém o traduziu para o latim.

Qual a proximidade entre essa versão latina e o original?

É difícil responder. Mas Burgio e sua equipe pretendem publicar a primeira edição filologicamente completa de As Viagens de Marco Polo ao longo deste ano, em inglês. Seu objetivo é oferecer a hipótese mais plausível e suas versões.

"O sonho secreto de um filólogo é ser uma espécie de Indiana Jones, desenterrando tesouros", confessa Burgio.

E é exatamente isso que ele e sua equipe estão fazendo: desenterrando essa joia literária, de um dos primeiros escritores de viagens do mundo.

Nos Estados Unidos, "Marco Polo" é um conhecido jogo de pega-pega praticado em piscinas. Um jogador vendado grita "Marco!" enquanto tenta pegar os que respondem "Polo".

Curiosamente, o legado do viajante veneziano homônimo é tão difícil de encontrar quanto os praticantes do jogo.

Não foi só a versão original do livro que se perdeu para sempre. O palácio da família Polo foi destruído por um incêndio no século 16.

Zorzi me levou do seu apartamento até o local onde ficava o palácio. Na curta caminhada, observamos pelo menos seis placas de mármore em construções diferentes, afirmando ser o local da casa da família Polo.

A lápide do túmulo de Marco Polo na igreja veneziana de São Lourenço também desapareceu. E nunca foi construído nenhum monumento na cidade dedicado ao viajante.

"É uma maldição", afirma a professora Tiziana Plebani, que passou 10 anos estudando Marco Polo e seu testamento, escrito no seu leito de morte.

E, se o legado do viajante veneziano é obscuro, a veracidade das suas histórias é questionada há séculos.

Será que ele realmente viajou até a China? E, se for verdade, por que ele não mencionou o chá, nem a Grande Muralha?

Afinal, ele nem sequer falava chinês, o que parece improvável para alguém que afirmava ter feito negócios na região por um quarto de século.

Algumas destas questões foram levantadas já na Idade Média. Mas, recentemente, os especialistas parecem concordar que existem respostas razoáveis para elas.

Burgio, por exemplo, não se surpreende pelo fato de Marco Polo não mencionar o chá no seu relato de viagem.

"Esse hábito de beber chá é motivo de fixação entre os historiadores anglo-saxões", afirma Burgio. "Por que Marco Polo se importaria com o chá? Eu entendo se fosse vinho ou café, mas chá?"

Além disso, o chinês não era o idioma da classe dominante da época "e a Grande Muralha ainda não havia sido completada", acrescenta Zorzi.

As provas das viagens de Marco Polo também podem ser encontradas em documentos legais.

Após a morte do marido, a filha mais velha de Polo, Fantina, foi à justiça pedir seu dote de volta. Entre os bens, ela relacionou um passaporte dourado oferecido ao seu pai pelo Kublai Khan. A placa preciosa significava que Marco Polo havia viajado com a bênção do Khan.

Tudo isso sem mencionar que o mercador conseguiu descrever em detalhes o sistema monetário chinês, por exemplo. Os especialistas acreditam que ele pode ter exagerado seu papel de embaixador, afirmando ser mais importante do que era na realidade, mas parece mais do que provável que ele tenha realmente viajado até a China.

A história de Fantina Polo revela outro ponto importante sobre seu pai. No seu testamento, Marco Polo deixou tudo para sua esposa e filhas, o que não era comum naquela época.

"É verdade que ele não tinha filhos ou irmãos [homens] para quem pudesse deixar sua fortuna, mas ele poderia ter procurado parentes homens mais distantes", explica Tiziana Plebani.

"Por isso, ou ele não se dava bem com nenhum homem da sua família, ou ele realmente valorizava e respeitava suas filhas e sua esposa. O que faz sentido, considerando que os mercadores venezianos ficavam fora da cidade por anos e suas mulheres eram confiadas com tudo o que havia em casa."

Marco Polo era um homem da era medieval, mas ele descreve sem julgamentos uma região de Tebet (hoje, Tibete) onde ninguém se casava com uma mulher virgem. Além disso, as mulheres que tiveram muitos amantes eram consideradas as melhores esposas, já que devia haver alguma razão para elas terem sido tão procuradas.

O mercador também se maravilha com a chamada Ilha das Mulheres na Índia, que os homens só podiam visitar durante três meses do ano (em março, abril e maio). E descreve como as mulheres e meninas tártaras cavalgavam pela Ásia central da mesma forma que os homens.

Mas os interesses e a curiosidade de Marco Polo eram ecléticos. Eles incluíam de tudo, "desde os hábitos sexuais das concubinas até um tipo específico de galinha que tinha pelos em vez de penas", segundo Eugenio Burgio.

O viajante também escreve sobre a cidade de Sapurgan (hoje, Sheberghan, no Afeganistão), que produzia os melhores melões do mundo – "mais doces do que mel".

Marco Polo também descreve os costumes da região de Malabar, no sul da Índia, onde as pessoas se lavavam antes das refeições e usavam apenas a mão direita para comer.

E admira a sabedoria do Kublai Khan, que "plantava árvores ao longo das estradas", para que os viajantes pudessem encontrar facilmente seu caminho e usufruir do conforto da sua sombra.

Marco Polo não acreditava que sua cultura fosse superior às demais e era um ardente admirador do império mongol. Ele escreveu sobre as maravilhas e os aspectos inteligentes de cada cultura que conheceu.

"Foi a primeira vez que Marco Polo saiu de Veneza", explica Pieralvise Zorzi. "É um belo mundo que se abre, visto pelos olhos de um adolescente. Tudo é tão novo, tão incrivelmente interessante, que ele conseguiu registrar tudo na memória."

O mundo de hoje é muito menor porque quase não há cantos inexplorados, como prossegue Burgio.

Marco Polo viveu em uma época em que ainda havia muito a se descobrir. E ele parece ter visto a humanidade como um todo, observando que "as pessoas podem ter comportamentos diferentes do nosso, mas pelos mesmos motivos".

"Marco Polo nos ensina a sermos abertos e mais curiosos, mais dispostos a interagir [com outras culturas]", afirma Plebani. Ele considera o mercador um "mensageiro da paz e da admiração".

Por falar em admiração: e quanto aos animais mitológicos que ele afirmou ter encontrado?

Um deles é a salamandra medieval, um lagarto lendário que se acreditava ter o estranho poder de viver no fogo. Marco Polo afirmou tê-la visto em Chingitalas, no norte da China.

Mas ele também disse que não se trata de um animal. Ele o descreveu como um material filamentoso e resistente ao fogo – trata-se do amianto.

E quanto ao unicórnio?

Marco Polo explicou que seu chifre é grosso e preto. Sua cabeça parece a de um javali selvagem, ele está sempre olhando para baixo e adora a lama.

"Ele é muito feio e não se parece em nada com o que imaginamos, nem com uma criatura que pudesse ser embalada por uma mulher virgem, pelo contrário", escreveu ele.

Marco Polo realmente viu esse animal. Era o que hoje chamamos de rinoceronte.
Anna Bressanin

sexta-feira, janeiro 26

Primeiros passos

 


Como adormecer

Em noites de insônia inventei um modo de adormecer infantil em que eu me falo baixo e muitas vezes dá certo. É um pouco assim, se me lembro: “Retrogredi: sou uma criança pequena. Eu me deito e todos dormem comigo. Nada de mau pode acontecer. Tudo é bom e suave. A alma é eterna. Nunca ninguém morre. O prazer de ser criança é grande e doce. Deus se espalha pelo meu corpo: sua doçura é sentida como um paladar pelo corpo todo. Está bom, está bom. Deus me ilumina toda mas bem em penumbra para sua luz não me despertar. Sou uma criança: não tenho deveres, só direitos. O prazer de estar viva é o de adormecer. Sinto esse viver lentíssimo como um sabor pelas pernas e pelos braços. Minha alma está enfim entregue. Nada mais tenho a entregar. Nada me segura mais: vou. Vou para a beatitude. A beatitude me guia e me leva pela mão. A beatitude em vida.”

Clarice Lispector, "Todas as crônicas"

Tempo


Coisa que acaba de deixar a querida leitora um pouco mais velha ao chegar ao fim desta linha.
Mario Quintana, " Caderno H"

São Muitos, os Céus...

O céu está enfarruscado. O vento soprava nuvens cinzentas desgrenhadas. Nem lua nem estrelas. Bem dizia minha mãe que em dia de chuva elas se escondem, por medo de ficar molhadas. Lembrei-me de Prometeu: foi ele quem roubou dos deuses o fogo — por dó dos mortais em noites iguais àquela. Se não fosse por ele, o fogo não estaria crepitando no fogão de lenha. O fogo fazia toda a diferença. Lá fora estava frio, escuro e triste. Na cozinha estava quentinho, vermelho e aconchegante. No fogo fervia a sopa: o cheiro era bom, misturado ao cheiro da fumaça. Comida melhor que sopa não existe. Se eu tivesse de escolher uma comida para comer pelo resto de minha vida não seria nem camarão, nem picanha, nem lasanha. Seria sopa. Sopa é comida de pobre, que pode ser feita com as sobras. Pela magia do fogo, caldeirão, água e qualquer sobra vira sopa boa. Tem até a estória da sopa de pedra…

O fogo é um poder bruxo. Tem o poder de irrealizar o real: os olhos ficam enfeitiçados pela dança das chamas, os objetos em volta vão perdendo os contornos, acabam por transformar-se em fumaça. Quando isso acontece, começam a surgir, do esquecimento em que estavam guardadas, as coisas que a memória eternizou. O fogo faz esquecer para poder lembrar. Dizia sempre para os meus clientes que, em vez do divã, que lembra maca de consultório médico, eu preferiria estar sentado com eles diante de um fogão aceso. É diante do fogo que a poesia aparece melhor. Não admira que Neruda tivesse dito que a substância dos poetas são o fogo e a fumaça.

“Antigamente eu costumava propor uma troca com Deus: um ano de vida por um só dia da minha infância. Hoje não faço isso. Tenho medo de que ele me atenda. Não acho prudente, na minha idade, dispor assim dos meus anos futuros, pois não sei quantos estão ainda à minha espera…” Assim falou a Maria Alice com voz mansa, saudade pura. O fogão de lenha é lugar de saudade. Porque os fogões de lenha, eles mesmos, são fantasmas de um mundo que não mais existe.
“Quando eu era menina, lá em Mossâmedes, nas noites frias a gente se reunia na cozinha, todos assentados em volta de uma bacia cheia de brasas, os pés nos pauzinhos das cadeiras, era bom o calor do fogo nos pés frios…”

“… a mãe enrolava um pano na cabeça e dizia: ‘Vou no quintal apanhar umas folhas de laranjeira pra fazer um chá pra nós’ — e virava a taramela para abrir a porta da cozinha. O pai dizia sempre a mesma coisa, todo dia: ‘Mulher, você vai é ficar estuporada, de boca torta. Faz mal tomar friagem com corpo quente de fogo…’. Mas a mãe nem ligava. Com as canecas quentes de chá na mão — como era bom o cheiro de folha de laranja! Posso até sentir ele de novo! —, a gente pedia ao pai pra contar estórias. Ele contava. Eram sempre as mesmas. A gente já sabia. Mas era como se ele estivesse contando pela primeira vez. Vinha sempre o assombro, o medo, os arrepios na espinha.”

Aí ela parou e começou a divagar. Lembrou-se de um tio.

“Naquele tempo as pessoas eram diferentes. Pois esse meu tio tinha, na frente da casa dele, uma sala grande, vazia, que nunca era usada. Houve gente que quis alugar a sala — ele receberia um bom dinheirinho por ela. Recusou. E se explicou: ‘Não alugo, não. É dessa sala que eu vejo a chuva vindo, lá longe. Se eu alugasse, ficaria triste quando a chuva viesse…’. É, as pessoas eram diferentes…”

Houve um silêncio. Aí a memória poética se transformou em imaginação teológica.

“Eu acho que há muitos céus, um céu para cada um. O meu céu não é igual ao seu. Porque céu é o lugar de reencontro com as coisas que a gente ama e o tempo nos roubou. No céu está guardado tudo aquilo que a memória amou…”

Rubem Alves, "Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo"

A Câmara das estátuas

Nos primeiros dias, havia no reino dos andaluzes uma cidade em que residiram seus reis e que tinha o nome de Lebtit ou Ceuta, ou Jaén. Havia um forte castelo naquela cidade, cuja porta de dois batentes não era para entrar nem mesmo para sair, mas para que a mantivessem fechada. Cada vez que um rei falecia e outro rei herdava o trono altíssimo, este acrescentava com as mãos uma fechadura nova na porta, até que foram vinte e quatro as fechaduras, uma para cada rei. Aconteceu então que um homem malvado, que não era da casa real, assenhorou-se do poder, e, em lugar de acrescentar uma fechadura, quis que as vinte e quatro anteriores fossem abertas para olhar o conteúdo daquele castelo. O vizir e os emires suplicaram-lhe que não fizesse tal coisa e esconderam dele o chaveiro de ferro e lhe disseram que acrescentar uma fechadura era mais fácil que forçar vinte e quatro, mas ele repetia com astúcia maravilhosa: “Quero examinar o conteúdo deste castelo”. Ofereceram-lhe então quantas riquezas podiam acumular em rebanhos, em ídolos cristãos, em prata e ouro, mas ele não quis desistir e abriu a porta com a mão direita (que arderá para sempre). Lá dentro os árabes estavam representados em metal e madeira, sobre seus rápidos camelos e potros, com turbantes que ondulavam sobre a espádua e alfanjes suspensos por talabartes e a lança em riste na mão direita. Todas aquelas figuras eram em relevo e projetavam sombras no chão, e um cego podia reconhecê-las mediante o simples tato, e as patas dianteiras dos cavalos não tocavam o solo e não caíam, como se tivessem empinado. Grande espanto causaram no rei aquelas primorosas figuras, e mais ainda a ordem e o silêncio perfeito que se observava nelas, porque todas olhavam para um mesmo lado, que era o poente, e não se ouvia nem uma voz nem um clarim. Era isso que havia na primeira câmara do castelo. Na segunda estava a mesa de Salomão, filho de Davi — seja para ambos a salvação! —, talhada numa única pedra esmeralda, cuja cor, como se sabe, é o verde, e cujas propriedades ocultas são indescritíveis e autênticas, porque serena as tempestades, mantém a castidade de seu portador, afugenta a disenteria e os maus espíritos, decide favoravelmente um litígio e é de grande socorro nos partos.

Na terceira acharam dois livros: um era negro e ensinava as virtudes dos metais, dos talismãs e dos dias, assim como a preparação de venenos e de contravenenos; outro era branco e não foi possível decifrar seu ensinamento, embora a escrita fosse clara. Na quarta encontraram um mapa-múndi, no qual estavam os reinos, as cidades, os mares, os castelos e os perigos, cada qual com seu nome verdadeiro e com sua precisa figura.

Na quinta encontraram um espelho em forma circular, obra de Salomão, filho de Davi — seja para ambos o perdão! —, cujo preço era alto, pois era feito de diversos metais e quem se mirasse em sua face veria os rostos de seus pais e de seus filhos, desde o primeiro Adão até os que ouvirão a Trombeta. A sexta estava cheia de elixir, do qual um único adarme bastava para mudar três mil onças de prata em três mil onças de ouro. A sétima pareceu-lhes vazia e era tão longa que o mais hábil dos arqueiros teria podido disparar uma flecha da porta sem conseguir cravá-la no fundo. Na parede final viram gravada uma inscrição terrível. O rei examinou-a e compreendeu-a, e dizia assim: “Se alguma mão abrir a porta deste castelo, os guerreiros de carne que se parecem aos guerreiros de metal da entrada se apoderarão do reino”.

Essas coisas aconteceram no ano 89 da Hégira. Antes que chegasse a seu fim, Tárik apoderou-se daquela fortaleza e derrotou aquele rei e vendeu suas mulheres e seus filhos e desolou suas terras. Assim foram se expandindo os árabes pelo reino de Andaluzia, com suas figueiras e pradarias irrigadas nas quais não se padece de sede. Quanto aos tesouros, conta-se que Tárik, filho de Zaid, remeteu-os ao califa seu senhor, que os guardou numa pirâmide.
Jorge Luis Borges, "História universal da infâmia"

quarta-feira, janeiro 24

Nos velhos tempos...

 


Sonho

Um poema que ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração
Mario Quintana, "Caderno H"

São Muitos, os Céus...

O céu está enfarruscado. O vento soprava nuvens cinzentas desgrenhadas. Nem lua nem estrelas. Bem dizia minha mãe que em dia de chuva elas se escondem, por medo de ficar molhadas. Lembrei-me de Prometeu: foi ele quem roubou dos deuses o fogo — por dó dos mortais em noites iguais àquela. Se não fosse por ele, o fogo não estaria crepitando no fogão de lenha. O fogo fazia toda a diferença. Lá fora estava frio, escuro e triste. Na cozinha estava quentinho, vermelho e aconchegante. No fogo fervia a sopa: o cheiro era bom, misturado ao cheiro da fumaça. Comida melhor que sopa não existe. Se eu tivesse de escolher uma comida para comer pelo resto de minha vida não seria nem camarão, nem picanha, nem lasanha. Seria sopa. Sopa é comida de pobre, que pode ser feita com as sobras. Pela magia do fogo, caldeirão, água e qualquer sobra vira sopa boa. Tem até a estória da sopa de pedra…

O fogo é um poder bruxo. Tem o poder de irrealizar o real: os olhos ficam enfeitiçados pela dança das chamas, os objetos em volta vão perdendo os contornos, acabam por transformar-se em fumaça. Quando isso acontece, começam a surgir, do esquecimento em que estavam guardadas, as coisas que a memória eternizou. O fogo faz esquecer para poder lembrar. Dizia sempre para os meus clientes que, em vez do divã, que lembra maca de consultório médico, eu preferiria estar sentado com eles diante de um fogão aceso. É diante do fogo que a poesia aparece melhor. Não admira que Neruda tivesse dito que a substância dos poetas são o fogo e a fumaça.

“Antigamente eu costumava propor uma troca com Deus: um ano de vida por um só dia da minha infância. Hoje não faço isso. Tenho medo de que ele me atenda. Não acho prudente, na minha idade, dispor assim dos meus anos futuros, pois não sei quantos estão ainda à minha espera…” Assim falou a Maria Alice com voz mansa, saudade pura. O fogão de lenha é lugar de saudade. Porque os fogões de lenha, eles mesmos, são fantasmas de um mundo que não mais existe.

“Quando eu era menina, lá em Mossâmedes, nas noites frias a gente se reunia na cozinha, todos assentados em volta de uma bacia cheia de brasas, os pés nos pauzinhos das cadeiras, era bom o calor do fogo nos pés frios…”
“… a mãe enrolava um pano na cabeça e dizia: ‘Vou no quintal apanhar umas folhas de laranjeira pra fazer um chá pra nós’ — e virava a taramela para abrir a porta da cozinha. O pai dizia sempre a mesma coisa, todo dia: ‘Mulher, você vai é ficar estuporada, de boca torta. Faz mal tomar friagem com corpo quente de fogo…’. Mas a mãe nem ligava. Com as canecas quentes de chá na mão — como era bom o cheiro de folha de laranja! Posso até sentir ele de novo! —, a gente pedia ao pai pra contar estórias. Ele contava. Eram sempre as mesmas. A gente já sabia. Mas era como se ele estivesse contando pela primeira vez. Vinha sempre o assombro, o medo, os arrepios na espinha.”

Aí ela parou e começou a divagar. Lembrou-se de um tio.

“Naquele tempo as pessoas eram diferentes. Pois esse meu tio tinha, na frente da casa dele, uma sala grande, vazia, que nunca era usada. Houve gente que quis alugar a sala — ele receberia um bom dinheirinho por ela. Recusou. E se explicou: ‘Não alugo, não. É dessa sala que eu vejo a chuva vindo, lá longe. Se eu alugasse, ficaria triste quando a chuva viesse…’. É, as pessoas eram diferentes…”

Houve um silêncio. Aí a memória poética se transformou em imaginação teológica.

“Eu acho que há muitos céus, um céu para cada um. O meu céu não é igual ao seu. Porque céu é o lugar de reencontro com as coisas que a gente ama e o tempo nos roubou. No céu está guardado tudo aquilo que a memória amou…”

Rubem Alves, "Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo"

Shahriar

Após a oração da alvorada, enquanto as nuvens da escuridão ainda resistiam frente à poderosa investida da luz, o vizir Dandan foi chamado para um encontro com o sultão Shahriar. A serenidade de Dandan desapareceu. O coração paterno estremecia à medida que vestia as roupas e murmurava: "Agora saberemos o resultado... Seu destino, Scherazade".

Seguiu pelo caminho que subia a montanha, montado num velho rocim e acompanhado por alguns guardas. À frente deles ia um homem carregando uma tocha, em um clima que irradiava orvalho e uma leve friagem. Três anos haviam se passado em meio ao medo e a esperança, a morte e a expectativa; três anos se passaram com a narração de histórias, e por causa dessas histórias a vida de Scherazade se estendera por três anos. No entanto, como tudo, as histórias haviam chegado a um fim, haviam terminado ontem. Portanto, que destino estaria a sua espera, querida filha minha?

Entrou no palácio que se equilibrava no alto da montanha. O mordomo o conduziu a uma sacada situada nos fundos, com vista para um imenso jardim. Shahriar estava sentado à luz de um lampião: a cabeça descoberta, o cabelo preto abundante, os olhos brilhantes no rosto comprido e uma vasta barba esparramada no alto do peito. Dandan beijou o solo diante dele, sentindo, apesar de sua longa convivência, um secreto temor daquele homem cujo passado estava cheio de severidade, crueldade e sangue de inocentes.

O sultão fez um sinal para que fosse apagado o único lampião.

A escuridão tomou conta e os espectros das árvores que exalavam uma fragrância perfumada foram lançados na semi-obscuridade.

- Que fique escuro para que eu possa ver a luz se derramar - murmurou Shahriar.

Dandan percebeu um certo otimismo.

- Que Deus conceda a Sua Majestade tudo o que há de melhor na noite e no dia.

Silêncio. Dandan não conseguiu discernir nem satisfação nem raiva por trás de sua expressão, até que o sultão disse calmamente:

- Nossa vontade é que Scherazade permaneça nossa esposa. Dandan ergueu-se depressa, curvou-se diante do sultão, beijando-lhe a mão num agradecimento tão sentido que lhe trouxe lágrimas aos olhos.

- Que Deus o proteja em seu reinado para todo o sempre.

- A justiça - disse o sultão, como se recordasse suas vítimas - possui métodos díspares, da espada ao perdão, e Deus tem Sua própria sabedoria.

- Que Deus possa guiar os passos de Sua Majestade até Sua sabedoria.

- As histórias dela são a magia do bem - disse ele, encantado. - Elas revelam mundos que convidam à reflexão.

O vizir ficou subitamente embriagado de alegria.

- Ela me deu um filho e meu espírito agitado se acalmou - disse o sultão.

- Que Sua Majestade possa desfrutar da felicidade, aqui e na eternidade.

- Felicidade! - murmurou bruscamente o sultão.

Dandan ficou preocupado, por alguma razão. Soou o canto dos galos. Como se estivesse falando consigo mesmo, o sultão disse:

- A própria existência é a coisa mais inescrutável da existência.

Mas o seu tom de perplexidade desapareceu quando exclamou:

- Olhe! Lá!

Dandan olhou para o horizonte e o viu incandescente da santa alegria.

Naguib Mahfouz, " Noites das mil e uma noites"

terça-feira, janeiro 23

Casa cheia

 


O vitral

Desde muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos. — Ora... Temos tantos... — respondera o homem. Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos! A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível — e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se. — Está bem. Você não quer...


(A voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.) — Suas tolices, Matilde... Quando é isso?

Como se a ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:

— Em setembro — dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu...

— Ah! Uma comemoração — interrompera o esposo. Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós.


Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas purificara-se da ironia e as repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter. Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, com réstias de sol no mosaico, no leito, nas paredes, mas não com as alegrias sonhadas, sem o que tudo o mais se tornava inexpressivo.

— Se você não quiser, eu não faço questão do retrato — disse ela. Foi tolice.

— O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado?

Ainda há tempo.

— Não. Vou assim mesmo.

Abriu a porta, saíram. Flutuavam raras nuvens brancas; as folhas das aglaias tinham um brilho fosco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.

Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.

— Manhã linda! — murmurou. Hoje eu queria ser menina.

— Você é.

A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente. Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo, mas a causa mesma de tudo o que naquele instante sentia; e que, sem ele, o mundo e suas belezas não teriam sentido?

Estas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.
— Aproveite — aconselhou ele. Isso passa.

— Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei. As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos.

— Não é possível guardar a mínima alegria — disse ele. Em coisa alguma.

Nenhum vitral retém a claridade.

Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à infância e ao domingo, que fluíam com força através delas. Atravessaram a rua, abriram um portão, desapareceram.

Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. “Que este momento me possua, me ilumine e desapareça — pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo.”

Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral.

Osman Lins, "Obra Completa"

Renascimento

Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha ideia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos que a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado.

Manoel de Barros

Prólogo

O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo, o que se encontra à esquerda de quem olha, representando, o astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram raios de aguda luz e sinuosas labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor que não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir, pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo. Pela expressão da cara, que é de inspirado sofrimento, e pela direcção do olhar, erguido para o alto, deve de ser o Bom Ladrão. O cabelo, todo aos caracóis, é outro indício que não engana, sabendo-se que anjos e arcanjos assim o usam, e o criminoso arrependido, pelas mostras, já está no caminho de ascender ao mundo das celestiais criaturas. Não será possível averiguar se este tronco ainda é uma árvore, apenas adaptada, por mutilação selectiva, a instrumento de suplício, mas continuando a alimentar-se da terra pelas raízes, porquanto toda a parte inferior dela está tapada por um homem de barba comprida, vestido de ricas, folgadas e abundantes roupas, que, tendo embora levantada a cabeça, não é para o céu que olha. Esta postura solene, este triste semblante, só podem ser de José de Arimateia, que Simão de Cirene, sem dúvida outra hipótese possível, após o trabalho a que o tinham forçado, ajudando o condenado no transporte do patíbulo, conforme os protocolos destas execuções, fora à sua vida, muito mais preocupado com as consequências do atraso para um negócio que trazia aprazado do que com as mortais aflições do infeliz que iam crucificar. Ora, este José de Arimateia é aquele bondoso e abastado homem que ofereceu os préstimos de um túmulo seu para nele ser depositado o corpo principal, mas a generosidade não lhe servirá de muito na hora das santificações, sequer das beatificações, pois não tem, a envolver-lhe a cabeça, mais do que o turbante com que sai à rua todos os dias, ao contrário desta mulher que aqui vemos em plano próximo, de cabelos soltos sobre o dorso curvo e dobrado, mas toucada com a glória suprema duma auréola, no seu caso recortada como um bordado doméstico. De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a mirada sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas, assim arrastadas à perdição pelo infame corpo. É, porém, de compungida tristeza a expressão do seu rosto, e o abandono do corpo não exprime senão a dor de uma alma, é certo que escondida por carnes tentadoras, mas que é nosso dever ter em conta, falamos da alma, claro está, esta mulher poderia até estar inteiramente nua, se em tal preparo tivessem escolhido representá-la, que ainda assim haveríamos de demonstrar-lhe respeito e homenagem. Maria Madalena, se ela é, ampara, e parece que vai beijar, num gesto de compaixão intraduzível por palavras, a mão doutra mulher, esta sim, caída por terra, como desamparada de forças ou ferida de morte. O seu nome também é Maria, segunda na ordem de apresentação, mas, sem dúvida, primeiríssima na importância, se algo significa o lugar central que ocupa na região inferior da composição. Tirando o rosto lacrimoso e as mãos desfalecidas, nada se lhe alcança a ver do corpo, coberto pelas pregas múltiplas do manto e da túnica, cingida na cintura por um cordão cuja aspereza se adivinha. É mais idosa do que a outra Maria, e esta é uma boa razão, provavelmente, mas não a única, para que a sua auréola tenha um desenho mais complexo, assim, pelo menos, se acharia autorizado a pensar quem, não dispondo de informações precisas acerca das precedências, patentes e hierarquias em vigor neste mundo, estivesse obrigado a formular uma opinião. Porém, tendo em conta o grau de divulgação, operada por artes maiores e menores, destas iconografias, só um habitante doutro planeta, supondo que nele não se houvesse repetido alguma vez, ou mesmo estreado, este drama, só esse em verdade inimaginável ser ignoraria que a afligida mulher é a viúva de um carpinteiro chamado José e mãe de numerosos filhos e filhas, embora só um deles, por imperativos do destino ou de quem o governa, tenha vindo a prosperar, em vida mediocremente, mas maiormente depois da morte. Reclinada sobre o seu lado esquerdo, Maria, mãe de Jesus, esse mesmo a quem acabamos de aludir, apoia o antebraço na coxa de uma outra mulher, também ajoelhada, também Maria de seu nome, e afinal, apesar de não lhe podermos ver nem fantasiar o decote, talvez verdadeira Madalena. Tal como a primeira desta trindade de mulheres, mostra os longos cabelos soltos, caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar de serem louros, se não foi pura casualidade a diferença do traço, mais leve neste caso e deixando espaços vazios no sentido das madeixas, o que, obviamente, serviu ao gravador para aclarar o tom geral da cabeleira representada. Com tais razões não pretendemos afirmar que Maria Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas nos estamos conformando com a corrente de opinião maioritária que insiste em ver nas louras, tanto as de natureza como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de pecado e perdição. Tendo sido Maria Madalena, como é geralmente sabido, tão pecadora mulher, perdida como as que mais o foram, teria também de ser loura para não desmentir as convicções, em bem e em mal adquiridas, de metade do género humano. Não é, porém, por parecer esta terceira Maria, em comparação com a outra, mais clara na tez e no tom do cabelo, que insinuamos e propomos, contra asarrasadoras evidências de um decote profundo e de um peito que se exibe, ser ela a Madalena. Outra prova, esta fortíssima, robustece e afirma a identificação, e vem a ser que a dita mulher, ainda que um pouco amparando, com distraída mão, a extenuada mãe de Jesus, levanta, sim, para o alto o olhar, e este olhar, que é de autêntico e arrebatado amor, ascende com tal força que parece levar consigo o corpo todo, todo o seu ser carnal, como uma irradiante auréola capaz de fazer empalidecer o halo que já lhe está rodeando a cabeça e reduzindo pensamentos e emoções. Apenas uma mulher que tivesse amado tanto quanto imaginamos que Maria Madalena amou poderia olhar desta maneira, com o que, derradeiramente, fica feita a prova de ser ela esta, só esta, e nenhuma outra, excluída portanto a que ao lado se encontra, Maria quarta, de pé, meio levantadas as mãos, em piedosa demonstração, mas de olhar vago, fazendo companhia, neste lado da gravura, a um homem novo, pouco mais que adolescente, que de modo amaneirado a perna esquerda flecte, assim, pelo joelho, enquanto a mão direita, aberta, exibe, numa atitude afectada e teatral, o grupo de mulheres a quem coube representar, no chão, a acção dramática. Este personagem, tão novinho, com o seu cabelo aos cachos e o lábio trémulo, é João. Tal como José de Arimateia, também esconde com o corpo o pé desta outra árvore que, lá em cima, no lugar dos ninhos, levanta ao ar um segundo homem nu, atado e pregado como o primeiro, mas este é de cabelos lisos, deixa pender a cabeça para olhar, se ainda pode, o chão, e a sua cara, magra e esquálida, dá pena, ao contrário do ladrão do outro lado, que mesmo no transe final, de sofrimento agónico, ainda tem valor para mostrar-nos um rosto que facilmente imaginamos rubicundo, corria-lhe bem a vida quando roubava, não obstante a falta que fazem as cores aqui. Magro, de cabelos lisos, de cabeça caída para a terra que o há-de comer, duas vezes condenado, à morte e ao inferno, este mísero despojo só pode ser o Mau Ladrão, rectíssimo homem afinal, a quem sobrou consciência para não fingir acreditar, a coberto de leis divinas e humanas, que um minuto de arrependimento basta para resgatar uma vida inteira de maldade ou uma simples hora de fraqueza. Por cima dele, também chorando e clamando como o sol que em frente está, vemos a lua em figura de mulher, com uma incongruente argola a enfeitar-lhe a orelha, licença que nenhum artista ou poeta se terá permitido antes e é duvidoso que se tenha permitido depois, apesar do exemplo. Este sol e esta lua iluminam por igual a terra, mas a luz ambiente é circular, sem sombras, por isso pode ser tão nitidamente visto o que está no horizonte, ao fundo, torres e muralhas, uma ponte levadiça sobre um fosso onde brilha água, umas empenas góticas, e lá por trás, no testo duma última colina, as asas paradas de um moinho. Cá mais perto, pela ilusão da perspectiva, quatro cavaleiros de elmo, lança e armadura fazem voltear as montadas em alardes de alta escola, mas os seus gestos sugerem que chegaram ao fim da exibição, estão saudando, por assim dizer, um público invisível. A mesma impressão de final de festa é dada por aquele soldado de infantaria que já dá um passo para retirar-se, levando, suspenso da mão direita, o que, a esta distância, parece um pano, mas que também pode ser manto ou túnica, enquanto dois outros militares dão sinais de irritação e despeito, se é possível, de tão longe, decifrar nos minúsculos rostos um sentimento, como de quem jogou e perdeu. Por cima destas vulgaridades de milícia e de cidade muralhada pairam quatro anjos, sendo dois dos de corpo inteiro, que choram, e protestam, e se lastimam, não assim um deles, de perfil grave, absorto no trabalho de recolher numa taça, até à última gota, o jorro de sangue que sai do lado direito do Crucificado. Neste lugar, a que chamam Gólgota, muitos são os que tiveram o mesmo destino fatal e outros muitos o virão a ter, mas este homem, nu, cravado de pés e mãos numa cruz, filho de José e de Maria, Jesus de seu nome, é o único a quem o futuro concederá a honra da maiúscula inicial, os mais nunca passarão de crucificados menores. É ele, finalmente, este para quem apenas olham José de Arimateia e Maria Madalena, este que faz chorar o sol e a lua, este que ainda agora louvou o Bom Ladrão e desprezou o Mau, por não compreender que não há nenhuma diferença entre um e outro, ou, se diferença há, não é essa, pois o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outro. Tem por cima da cabeça, resplandecente de mil raios, mais do que, juntos, o sol e a lua, um cartaz escrito em romanas letras que o proclamam Rei dos Judeus, e, cingindo-a, uma dolorosa coroa de espinhos, como a levam, e não sabem, mesmo quando não sangram para fora do corpo, aqueles homens a quem não se permite que sejam reis em suas próprias pessoas. Não goza Jesus de um descanso para os pés, como o têm os ladrões, todo o peso do seu corpo estaria suspenso das mãos pregadas no madeiro se não fosse restar--lhe ainda alguma vida, a bastante para o manter erecto sobre os joelhos retesados, mas que cedo se lhe acabará, a vida, continuando o sangue a saltar-lhe da ferida do peito, como já foi dito. Entre as duas cunhas que firmam a cruz a prumo, como ela introduzidas numa escura fenda do chão, ferida da terra não mais incurável que qualquer sepultura de homem, está um crânio, e também uma tíbia e uma omoplata, mas o crânio é que nos importa, porque é isso o que Gólgota significa, crânio, não parece ser uma palavra o mesmo que a outra, mas alguma diferença lhes notaríamos se em vez de escrever crânio e Gólgota escrevêssemos gólgota e Crânio. Não se sabe quem aqui pôs estes restos e com que fim o teria feito, se é apenas um irónico e macabro aviso aos infelizes supliciados sobre o seu estado futuro, antes de se tornarem em terra, pó e coisa nenhuma. Mas também há quem afirme que este é o próprio crânio de Adão, subido do negrume profundo das camadas geológicas arcaicas, e agora, porque a elas não pode voltar, condenado eternamente a ter diante dos olhos a terra, seu único paraíso possível e para sempre perdido. Lá atrás, no mesmo campo onde os cavaleiros executam um último volteio, um homem afasta-se, virando ainda a cabeça para este lado. Leva na mão esquerda um balde e uma cana na mão direita. Na extremidade da cana deve haver uma esponja, é difícil ver daqui, e o balde, quase apostaríamos, contém água com vinagre. Este homem, um dia, e depois para sempre, será vítima de uma calúnia, a de, por malícia ou escárnio, ter dado vinagre a Jesus ao pedir ele água, quando o certo foi ter-lhe dado da mistura que traz, vinagre e água, refresco dos mais soberanos para matar a sede, como ao tempo se sabia e praticava. Vai-se embora, não fica até ao fim, fez o que podia para aliviar as securas mortais dos três condenados, e não fez diferença entre Jesus e os Ladrões, pela simples razão de que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível.

José Saramago, "O Evangelho segundo Jesus Cristo"

O Bardo entre nós

Se Shakespeare vivesse hoje e quisesse ser gentil, a cada três ou quatro passos pela rua cumprimentaria algum de nós: alô, colega, olá, confrade. E precisaria resistir, no trajeto, aos convites de ingresso em associações, grêmios e sindicatos, além de recusar, com sua polidez britânica, aos apelos para frequentar, pagando reduzidas mensalidades, cursinhos de roteiro e de redação criativa.

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E há aquele tipo pleno de masculinidade e gramaticalmente vazio que se define como homem com ó maiúsculo.

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Chamei por Deus e a resposta foi um bulício na ameixeira, como se num dos seus galhos estivesse nascendo um passarinho.

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Quem mente só o suficiente mente suficientemente bem.

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Chega um momento em que não é preciso um exame clínico para atestar nosso estado. Um olhar qualquer, até o nosso diante do espelho, basta para ver que estamos mortos.

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Pronuncio o nome da literatura com a obstinação de um homem que, havendo sofrido a vida inteira por um amor não retribuído, teme não conseguir revelá-lo nem na hora final.

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Não sou representante de nada nem de ninguém. Não sou o defensor de uma causa nem dos que morreram por ela. Sou só alguém que amou a literatura como tantos amaram outras coisas e que não tem por nenhuma outra coisa o amor que por ela tem.

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Como é bom, às vezes, recusar os adornos que a literatura vive nos oferecendo e dizer, simplesmente, como Gertrude Stein, que uma rosa é uma rosa.

segunda-feira, janeiro 22

Abrigue-se


 

Página de história

De uma História Universal editada no século XXXIII: “Os homens do Século XX, talvez por motivos que só a miséria explicaria, costumavam aglomerar-se inconfortavelmente em enormes cortiços de cimento. Alguns atribuem o fato a não se sabe que misterioso pânico ao simples contato da natureza; mas isto é matéria de ficcionistas, místicos e poetas... O historiador sabe apenas que chegou a haver, em certas grandes áreas, conjuntos de cortiços erguidos lado a lado sem o suficiente espaço e arejamento, que poderiam alojar vários milhões de indivíduos. Era, por assim dizer, uma vida de insetos – mas sem a segurança que apresentam as habitações construídas por estes”.
Mario Quintana, "Caderno H"

Tangerine-Girl

De princípio a interessou o nome da aeronave: não “zepelim” nem dirigível, ou qualquer outra coisa antiquada; o grande fuso de metal brilhante chamava-se modernissimamente blimp. Pequeno como um brinquedo, independente, amável. A algumas centenas de metros da sua casa ficava a base aérea dos soldados americanos e o poste de amarração dos dirigíveis. E de vez em quando eles deixavam o poste e davam uma volta, como pássaros mansos que abandonassem o poleiro num ensaio de voo. Assim, de começo, aos olhos da menina, o blimp existia como uma coisa em si — como um animal de vida própria; fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma joia, librando-se majestosamente pouco abaixo das nuvens. Tinha coisas de ídolo, evocava-lhe um pouco o gênio escravo de Aladim. Não pensara nunca em entrar nele; não pensara sequer que pudesse alguém andar dentro dele. Ninguém pensa em cavalgar uma águia, nadar nas costas de um golfinho; e, no entanto, o olhar fascinado acompanha tanto quanto pode águia e golfinho, numa admiração gratuita — pois parece que é mesmo uma das virtudes da beleza essa renúncia de nós próprios que nos impõe, em troca de sua contemplação pura e simples.

Os olhos da menina prendiam-se, portanto, ao blimp sem nenhum desejo particular, sem a sombra de uma reivindicação. Verdade que via lá dentro umas cabecinhas espiando, mas tão minúsculas que não davam impressão de realidade — faziam parte da pintura, eram elemento decorativo, obrigatório como as grandes letras negras U S. Navy gravadas no bojo de prata. Ou talvez lembrassem aqueles perfis recortados em folha que fazem de chofer nos automóveis de brinquedo.

O seu primeiro contato com a tripulação do dirigível começou de maneira puramente ocasional. Acabara o café da manhã; a menina tirara a mesa e fora à porta que dá para o laranjal, sacudir da toalha as migalhas de pão. Lá de cima um tripulante avistou aquele pano branco tremulando entre as árvores espalhadas e a areia, e o seu coração solitário comoveu-se. Vivia naquela base como um frade no seu convento — sozinho entre soldados e exortações patrióticas. E ali estava, juntinho ao oitão da casa de telhado vermelho, sacudindo um pano entre a mancha verde das laranjeiras, uma mocinha de cabelo ruivo. O marinheiro agitou-se todo com aquele adeus. Várias vezes já sobrevoara aquela casa, vira gente embaixo entrando e saindo; e pensara quão distantes uns dos outros vivem os homens, quão indiferentes passam entre si, cada um trancado na sua vida. Ele estava voando por cima das pessoas, vendo-as, espiando-as, e, se algumas erguiam os olhos, nenhuma pensava no navegador que ia dentro; queriam só ver a beleza prateada vagando pelo céu.

Mas agora aquela menina tinha para ele um pensamento, agitava no ar um pano, como uma bandeira; decerto era bonita — o sol lhe tirava fulgurações de fogo do cabelo, e a silhueta esguia se recortava claramente no fundo verde-e-areia. Seu coração atirou-se para a menina num grande impulso agradecido; debruçou-se à janela, agitou os braços, gritou: “Amigo!, amigo!”— embora soubesse que o vento, a distância, o ruído do motor não deixariam ouvir-se nada. Ficou incerto se ela lhe vira os gestos e quis lhe corresponder de modo mais tangível. Gostaria de lhe atirar uma flor, uma oferenda. Mas que podia haver dentro de um dirigível da Marinha que servisse para ser oferecido a uma pequena? O objeto mais delicado que encontrou foi uma grande caneca de louça branca, pesada como uma bala de canhão, na qual em breve lhe iriam servir o café. E foi aquela caneca que o navegante atirou; atirou, não: deixou cair a uma distância prudente da figurinha iluminada, lá embaixo; deixou-a cair num gesto delicado, procurando abrandar a força da gravidade, a fim de que o objeto não chegasse sibilante como um projétil, mas suavemente, como uma dádiva. A menina que sacudia a toalha erguera realmente os olhos ao ouvir o motor do blimp. Viu os braços do rapaz se agitarem lá em cima. Depois viu aquela coisa branca fender o ar e cair na areia; teve um susto, pensou numa brincadeira de mau gosto — uma pilhéria rude de soldado estrangeiro. Mas quando viu a caneca branca pousada no chão, intacta, teve uma confusa intuição do impulso que a mandara; apanhou-a, leu gravadas no fundo as mesmas letras que havia no corpo do dirigível: U S. Navy. Enquanto isso, o blimp, em lugar de ir para longe, dava mais uma volta lenta sobre a casa e o pomar. Então a mocinha tornou a erguer os olhos e, deliberadamente dessa vez, acenou com a toalha, sorrindo e agitando a cabeça. O blimp fez mais duas voltas e lentamente se afastou — e a menina teve a impressão de que ele levava saudades. Lá de cima, o tripulante pensava também — não em saudades, que ele não sabia português, mas em qualquer coisa pungente e doce, porque, apesar de não falar nossa língua, soldado americano também tem coração.

Foi assim que se estabeleceu aquele rito matinal. Diariamente passava o blimp e diariamente a menina o esperava; não mais levou a toalha branca, e às vezes nem sequer agitava os braços: deixava-se estar imóvel, mancha clara na terra banhada de sol. Era uma espécie de namoro de gavião com gazela: ele, fero soldado cortando os ares; ela, pequena, medrosa, lá embaixo, vendo-o passar com os olhos fascinados. Já agora, os presentes, trazidos de propósito da base, não eram mais a grosseira caneca improvisada; caíam do céu números da Life e da Time, um gorro de marinheiro e, certo dia, o tripulante tirou do bolso o seu lenço de seda vegetal perfumado com essência sintética de violetas. O lenço abriu-se no ar e veio voando como um papagaio de papel; ficou preso afinal nos ramos de um cajueiro, e muito trabalho custou à pequena arrancá-lo de lá com a vara de apanhar cajus; assim mesmo ainda o rasgou um pouco, bem no meio.

Mas de todos os presentes o que mais lhe agradava era ainda o primeiro: a pesada caneca de pó de pedra. Pusera-a no seu quarto, em cima da banca de escrever. A princípio cuidara em usá-la na mesa, às refeições, mas se arreceou da zombaria dos irmãos. Ficou guardando nela os lápis e canetas. Um dia teve ideia melhor e a caneca de louça passou a servir de vaso de flores. Um galho de manacá, um bogari, um jasmim-do-cabo, uma rosa-menina, pois no jardim rústico da casa de campo não havia rosas importantes nem flores caras. Pôs-se a estudar com mais afinco o seu livro de conversação inglesa; quando ia ao cinema, prestava uma atenção intensa aos diálogos, a fim de lhes apanhar não só o sentido, mas a pronúncia. Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylotõu Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skelton. Porque ela era um pouco míope, mal o vislumbrava, olhando-o do chão: via um recorte de cabeça, uns braços se agitando; e, conforme a direção dos raios do sol, parecia-lhe que ele tinha o cabelo louro ou escuro.

Não lhe ocorria que não pudesse ser sempre o mesmo marinheiro. E, na verdade, os tripulantes se revezariam diariamente: uns ficavam de folga e iam passear na cidade com as pequenas que por lá arranjavam; outros iam embora de vez para a África, para a Itália. No posto de dirigíveis criava-se aquela tradição da menina do laranjal. Os marinheiros puseram-lhe o apelido de “Tangerine-Girl”. Talvez por causa do filme de Dorothy Lamour, pois Dorothy Lamour é, para todas as forças armadas norte-americanas, o modelo do que devem ser as moças morenas da América do Sul e das ilhas do Pacífico. Talvez porque ela os esperava sempre entre as laranjeiras. E talvez porque o cabelo ruivo da pequena, quando brilhava à luz da manhã, tinha um brilho acobreado de tangerina madura. Um a um, sucessivamente, como um bem de todos, partilhavam eles o namoro com a garota Tangerine. O piloto da aeronave dava voltas, obediente, voando o mais baixo que lhe permitiam os regulamentos, enquanto o outro, da janelinha, olhava e dava adeus. Não sei por que custou tanto a ocorrer aos rapazes a ideia de atirar um bilhete. Talvez pensassem que ela não os entenderia. Já fazia mais de um mês que sobrevoavam a casa, quando afinal o primeiro bilhete caiu; fora escrito sobre uma cara rosada de rapariga na capa de uma revista: laboriosamente, em letras de imprensa, com os rudimentos de português que haviam aprendido da boca das pequenas, na cidade: “Dear Tangerine-Girl. Please você vem hoje (today) base X. Dancing, show. Oito horas P.M.” E no outro ângulo da revista, em enormes letras, o “Amigo”, que é a palavra de passe dos americanos entre nós.

A pequena não atinou bem com aquele “Tangerine-Girl”. Seria ela? Sim, decerto... e aceitou o apelido, como uma lisonja. Depois pensou que as duas letras, do fim: “P.M.”, seriam uma assinatura. Peter, Paul, ou Patsy, como o ajudante de Nick Carter? Mas uma lembrança de estudo lhe ocorreu: consultou as páginas finais do dicionário, que tratam de abreviaturas, e verificou, levemente decepcionada, que aquelas letras queriam dizer “a hora depois do meio-dia”.

Não pudera acenar uma resposta porque só vira o bilhete ao abrir a revista, depois que o blimp se afastou. E estimou que assim o fosse: sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. Hoje veria se ele era alto e belo, louro ou moreno. Pensou em se esconder por trás das colunas do portão, para o ver chegar — e não lhe falar nada. Ou talvez tivesse coragem maior e desse a ele a sua mão; juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite. Tudo se ia passando como num sonho — e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos.

Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasas. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido para as doces palavras na língua estranha. às sete horas ligou o rádio e ficou escutando languidamente o programa de swings. Um irmão passou, fez troça do vestido bonito, naquela hora, e ela nem o ouviu. Às sete e meia já estava na varanda, com o olho no portão e na estrada. Às dez para as oito, noite fechada já há muito, acendeu a pequena lâmpada que alumiava o portão e saiu para o jardim. E às oito em ponto ouviu risadas e tropel de passos na estrada, aproximando-se.

Com um recuo assustado verificou que não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. Viu-os aproximarem-se, trêmula. Eles a avistaram, cercaram o portão — até parecia manobra militar -’ tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial. E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado — ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado — nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais “ele” fora o mesmo. Talvez nem sequer o próprio blimp fosse o mesmo...
Que vergonha, meu Deus! Dera adeus a tanta gente; traída por uma aparência enganosa, mandara diariamente a tantos rapazes diversos as mais doces mensagens do seu coração, e no sorriso deles, nas palavras cordiais que dirigiam à namorada coletiva, à pequena Tangerine-Girl, que já era uma instituição da base — só viu escárnio, familiaridade insolente... Decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem, quem quer que seja... decerto pensavam... Meu Deus do Céu!

Os moços, por causa da meia-escuridão, ou porque não cuidavam naquelas nuanças psicológicas, não atentaram na expressão de mágoa e susto que confrangia o rostinho redondo da amiguinha. E, quando um deles, curvando-se, lhe ofereceu o braço, viu-a com surpresa recuar, balbuciando timidamente: — Desculpem... houve engano... um engano...

E os rapazes compreenderam ainda menos quando a viram fugir, a princípio lentamente, depois numa carreira cega. Nem desconfiaram que ela fugira a trancar-se no quarto e, mordendo o travesseiro, chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos.

Nunca mais a viram no laranjal; embora insistissem em atirar presentes, viam que eles ficavam no chão, esquecidos — ou às vezes eram apanhados pelos moleques do sítio.

Rachel de Queiroz, "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século"

Ó sino da minha aldeia

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
Fernando Pessoa

Fantasia embalada pelo mundo

Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em ideias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo “ciao” ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.

Raduan Nassar, "Menina a caminho"

sexta-feira, janeiro 19

Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.

Pedro Mexia