Isso era possível porque as cidades eram pequenas. Quando cresceram e ficaram grandes demais, ficou impossível protegê-las com muros. As cidades se abriram então a todos. Coisa sem dúvida democrática. Mas o resultado foi que ficou impossível controlar a entrada e a saída de pessoas. Tanto os amigos quanto os malfeitores passaram a entrar e sair livremente. As pequenas casas ficaram, então, sem a proteção das muralhas e dos portões. A segurança passou a depender da polícia que, nessa nova situação, tinha por dever exercer as funções anteriormente exercidas pelas muralhas e portões: impedir a ação da violência criminosa.
Durante muito tempo isso funcionou bem. Não funciona mais. A casa grande está cheia de medo. A casa pequena está cheia de medo. As pessoas passaram a fugir dos espaços da cidade. Antigamente as famílias saíam às noites para simplesmente passear pelas ruas, praças e jardins. Era gostoso e tranquilo. Hoje ninguém pensa mais nisso. É mais seguro ficar em casa. A cidade se esvaziou. Ficou deserta. Lugar de perigo. É mais seguro ir passear no shopping. Com isso as cidades se degradam.
Um amigo meu me contou, horrorizado, o que lhe aconteceu em Recife. Ele queria atravessar uma ponte, mas a pessoa que o acompanhava o advertiu: “Não atravesse aquela ponte. Ela está cheia de crianças.” Até as crianças passaram a dar medo. As crianças de hoje não são como as de antigamente: elas se tornaram aprendizes do crime.
Os ricos tentaram reproduzir o modelo medieval das cidades fortificadas. Fecharam-se em condomínios guardados e edifícios de segurança máxima. Inutilmente. Não há muro, porta ou guarda que seja capaz de deter os criminosos. Hoje o crime é um dos negócios mais rendosos: fora das redes do fisco, fora da rede das punições. A impunidade do crime se tornou num incentivo ao crime. Por que trabalhar num emprego de oito horas que paga dois salários mínimos se resultado muito mais rendoso pode ser obtido numa ação de poucos minutos? O lucro vale o risco.
Eu amo a cidade, minha casa grande. É detestável ter medo de sair à noite, a pé, e ter de ficar em casa. Tenho saudade dos tempos em que as pessoas punham cadeiras na calçada para conversar. Tenho saudade dos tempos em que os namorados podiam namorar nos jardins. Jovem, eu caminhava do Seminário Presbiteriano, à avenida Brasil, até a estação ferroviária da Paulista, às cinco da manhã. Eu era a única pessoa na rua. O único ruído que se ouvia era o ruído dos meus passos e o apito dos guardas noturnos. Eu não tinha medo. Caminhava cantando: “A noite termina, o dia já vem, a estrela da alva não deve tardar...”
No momento os bandidos estão levando a melhor sobre a polícia. E o fato é que o povo nem liga muito, porque não confia também na polícia. Todo mundo sabe dos acordos entre polícia e bandidos. O povo está abandonado à sua própria sorte. Não há para quem reclamar. De que adianta fazer a queixa se se sabe que ela é inútil? Se nem os assassinos são presos, que dizer dos ladrões de cartões de crédito, bolsas e toca-fitas? A querida “vozinha”, tia Alice, que hoje está completando noventa anos, teve seu cartão de banco roubado na agência da Caixão Econômica e só deu por isso quando descobriu que as economias que fizera durante toda a sua vida não mais se encontravam em sua conta.
Não quero um prefeito que prometa segurança. Essa promessa não pode ser cumprida. Mas quero um prefeito que prometa lutar por ela. A primeira condição para a renovação de Campinas é que ela se torne um espaço onde se possa caminhar sem medo.
Rubem Alves, "Se eu pudesse viver minha vida novamente"
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