quarta-feira, janeiro 17

Com o mundo nas mãos

Bernardo tem cinco anos, mas já sabe da existência do Japão. E aponta para o céu com o dedo: “É atrás daquele teto azul que fica o Japão”. Tenho de explicar-lhe que aquilo é o céu, não é teto nenhum. “Mas então o céu não é o teto do mundo”. “Não: o céu é o céu. O mundo não tem teto. O azul do céu é o próprio ar. O Japão fica é lá embaixo” e apontei para o chão: “O mundo é redondo feito uma bola. Lá para cima não tem país mais nenhum não, só o céu mesmo, mais nada. Ele fez uma carinha aborrecida, um gesto de desilusão: “ Então este Brasil é mesmo o fim do mundo.

Daqui pra lá não tem mais nada... Difícil de lhe explicar o que até mesmo a mim parece meio esquisito: o mundo ser redondo, o Japão estar lá embaixo, os japoneses de cabeça pra baixo, como é que não caem” Às vezes, andando na rua e olhando para cima, eu mesmo tenho medo de cair.

Na primeira oportunidade compro e trago para casa um mapa-múndi: um desses globos terrestres modernos, aliás de fabricação japonesa, feito de matéria plástica e que se enchem de ar, como os balões.

O menino não lhe deu muita importância, quando apontei nele o Japão e a Inglaterra, o Brasil, os países todos. Limitou-se a fazê-lo girar doidamente, aos tapas, até que se desprendesse do suporte de metal. Logo se dispôs a sair jogando futebol com ele, não deixei.

Consegui convencê-lo a ir destruir outro brinquedo, o secador de cabelo da mãe, por exemplo, que faz um ventinho engraçado e assim que me vi só, tranquei-me no escritório para apreciar devidamente a minha nova aquisição. Com o mundo nas mãos, descobri coisas de espantar.

Descobri que a Coreia é muito mais lá para cima do que eu imaginava uma espécie de penduricalho da China, ali mesmo no costado do Japão. O que é que os Estados Unidos tinham de se meter ali, tão longe de casa.

O Vietnã nem me fale: uma tripinha de terra ao longo do Laos e do Camboja. Aliás, a confusão de países por ali, eu vou te contar. Tem a Tailândia e tem Burma, dois países de pernas compridas, tem a Malásia, a Indonésia. A Tasmânia não tem. Pelo menos não encontrei.

Continua sendo para mim apenas a terra daquele selo enorme que em menino era o melhor da minha coleção. Dou um piparote no mundo e ele gira diante de meus olhos, para que eu descubra o que é mais que tem.

Outra confusão é ali nas Arábias, onde o pau anda comendo; Síria, Líbano, Arábia Saudita, Iêmen, e o diabo de um país cor-de-rosa chamado Hadramaut de que nunca ouvi falar. Estou ficando bom de geografia. Duvido que alguém me diga onde fica Andorra.

A última pessoa a quem perguntei me disse que ficava nos limites de Aznavour. Pois fica é logo aqui, encravada entre a França e a Espanha, um paisinho de nada, vê quem pode. E fez aquele sucesso todo no Festival da Canção.

Em compensação, a Antártida é muito maior do que eu pensava, ocupa quase todo o Pólo Sul. E é bem no centro dela que eu tenho de soprar para encher o mundo. De repente me vem uma ideia meio paranoide. De tanto apalpar o globo de plástico, ele acabou meio murcho, acho que o ar está se escapando.

E quando me disponho a enchê-lo de novo, imagino que eu seja um ser imenso solto no espaço, botando a boca no mundo para enchê-lo com meu sopro.

O nosso planeta é mesmo uma bolinha perdida no cosmo, e do tamanho desta que tenho nas mãos é que os astronautas devem tê-lo visto da lua: uma linda esfera de manchas coloridas, com seus oceanos cheios de peixes e singrados por navios, as cidades agarradas aos continentes, ruas cheias de automóveis, casas cheias de gente, o ar riscado de aviões, de gaivotas e de urubus...

Tudo isso pequenino, insignificante, microscópico, os homens se explorando mutuamente, se maltratando, se assassinando para colher um segundo de satisfação ao longo dos séculos de História, não mais que alguns minutos em face da eternidade.

Que aventura mais temerária, a de Deus, escolhendo caprichosamente este lindo e insignificante planetinha para a ele enviar através dos espaços o seu Filho feito homem, com a missão de redimir a nossa pobre humanidade. Faço votos que tenha valido a pena e que um dia ela se veja redimida.

Até lá, este mundo não passará mesmo de uma bola, como esta que meu filho Bernardo, irrompendo alegremente no escritório, me arrebata das mãos e sai chutando pela casa.
Fernando Sabino, "As Melhores Crônicas de Fernando Sabino"

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