quinta-feira, janeiro 4

Os juízes

Os juízes, doutores vindos da cidade grande, faziam questão de demonstrar que não eram do lugar, que estavam ali apenas de passagem, à espera de promoção. Eram posudos, ganjentos, diziam frases latinas em seus discursos, “fero fers tuli latum ferre”, quem com ferro fere com ferro será ferido; o latim estava errado, mas, como ninguém sabia, não fazia diferença. Os homens do lugar ficavam murchos diante do juiz, gaguejavam e chegavam mesmo a perder a fala.

Açougues eram lugares de horrores. Minha mulher, grávida pela primeira vez, desmaiou ao entrar num deles. As moscas, as carcaças de porcos e vacas penduradas em ganchos, o sangue pingando, os fígados sobre o balcão — um espetáculo surrealista. Juízo semelhante sobre os açougues emitiu a Adélia Prado.

“O açougueiro e sua faca me expulsam, porque eu não tenho santidade, eu não sou digna de pôr os pés no lugar mais deprimente do mundo. Quando eu quero ficar humilde eu visito açougues, entro de um em um...” (Adélia Prado, Solte os cachorros, p. 9). De fato açougue é lugar de penitência. Se ainda se encontram açougues assim por este Brasil, imaginem como era antigamente. Para escapar do incômodo havia uma alternativa: comprar carne do vendedor ambulante, quase sempre um negro, pés descalços, calça arregaçada, equilibrando tabuleiro de madeira na cabeça, cheio de pedaços de carne, cobertos com folhas de bananeira, seguido por uma nuvem de moscas e cachorros, o que era normal. Empregado do açougueiro, ele apregoava a sua mercadoria: “Lombo de porco! Costela! Toicinho! Pernil! Fígado! Bucho!”. As donas de casa saíam à rua, ele tirava o tabuleiro da cabeça e elas escolhiam. Mas havia aqueles que preferiam ir aos açougues, minúsculos cômodos sem janelas com uma porta de grades à frente, sempre cheios de moscas.

Aconteceu que um juiz novo chegou à cidade cheio de boas intenções e se dispôs a se misturar com o povo. Saiu a caminhar tirando respeitosamente o chapéu para todos que encontrava. Foi indo assim até chegar ao Açougue Nossa Senhora da Misericórdia, propriedade do Tibúrcio, que acabara de matar um porco. A gritaria do porco, ouvida na cidade inteira, dispensava propaganda. Gritaria de porco — carne do porco no açougue do Tibúrcio. E lá estavam as duas metades, pendentes do teto, penduradas em ganchos. O juiz, para puxar conversa, afirmou com a autoridade da sua voz: “Então o senhor abate suínos!”. Tibúrcio perdeu a fala. Ficou gelado. Não sabia o que era “abate” nem “suíno”. Com certeza o meretríssimo o pegara em alguma infração da lei. O jeito era negar o crime. Gaguejou. “Não senhor, não senhor... Eu só mato porco...” .

Um outro caso de desencontro entre os homens do lugar e os juízes efêmeros se deu quando um roceiro que viera à cidade para comprar querosene, sal, rapadura e fumo de rolo se sentiu premido por uma urgência fisiológica inadiável. Sem alternativas, fez o que normalmente fazia na roça. Valendo-se de um muro de adobes caído entrou num terreno baldio onde o mato crescera, abaixou as calças, agachou-se e pôs-se a obrar. Vinha por aquela mesma rua um juiz com chapéu panamá e guarda-chuva enrolado que fazia as vezes de bengala, costume generalizado naquela época, que, vendo o homem fazendo o que fazia, horrorizou-se com tal falta de respeito, posto que era provável que por ali viessem a passar excelentíssimas senhoras. “O senhor não sabe que é contra a lei defecar em público?”, esbravejou o juiz. Sem saber o que era “defecar”, o roceiro entendeu a mensagem, e sem sair da sua posição deu uma lição de Filosofia do Direito ao juiz presunçoso: “Seu dotô, há necessidades que são mais fortes do que a lei...”.

Rubem Alves, "O Velho que Acordou Menino"

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