terça-feira, janeiro 9

Educar os vivos

O velho no fim do caminho espalhou as cadeiras pelo campo para que ao longe imitassem o rebanho. Pastoreava as cadeiras brancas da cozinha, quietas como bichos que pasmavam perante a paisagem. Sentava numa pedra e olhava também como sobrava por ali apenas o início do mundo. Tudo o que viera depois era, afinal, passageiro, uma forma de esperança vã, um gesto inútil contra o regresso dos montes à silvestre vocação de se imaginarem continuamente e à revelia das pessoas. Eram em ruínas as casas antigas, debaixo de plantas novas, tombadas como esqueletos de granito desabitados de seus animais. As casas sem ninguém, e vê-las era já haver transcendido, estar para depois da normalidade, ser depois, aberrante e ao abandono.

Escutava ainda as vozes dos vizinhos mortos. O que lhe diziam da disciplina dos invernos, do agreste do verão, a partida dos filhos, as doenças à espreita, a pressa, que nenhum vagar se salva de ser um pouco de ilusão. Escutava como cantavam seu nome ao cimo dos portões para que viesse do fundo a conversar um quase nada. Por muitos anos, cantavam seu nome nem que apenas para garantirem que estava bem, bastante nas suas tarefas, alimentado, abençoado. E o velho subia, sempre mais lento no passo, e havia uma alegria para fazer. Até ficar para último. Julgava ele que imitar os bichos com as tralhas era modo de ter alguém. E afeiçoava também os raros gatos, dois lobos que vinham pelo outono, algumas aves em cada primavera. Afeiçoava flores, os cactos, até a urze, os miosótis já mais adiante no riacho.

Cada coisa que vivesse poderia ser um corpo amigo. Para o velho no fim do caminho, qualquer coisa que demorasse ali se tornava companhia e merecia uma palavra, um interminável diálogo. Por isso, não era estranho nem louco que perguntasse às giestas pelo frio ou pelo muito vento. Não era estranho nem louco que as quisesse regar. Adoraria estar certo de as alimentar, tivessem as giestas uma boca e uma barriga que se visse a crescer. Pensava ele que seria mais simples se todas as coisas tivessem uma boca e pudessem testemunhar-se. Dizerem de si mesmas inequivocamente para que tudo se negociasse por estrita necessidade e candura. Então, às pessoas seria concreta a ternura por tanto que quer ser sem elas, sem o abate que provocam, sem a avidez infinita.

Julgava o velho que aquele tempo era uma devolução. Nutria quanto podia e observava. Ao longe, escassos, passavam carros e os seus roncos mecânicos podiam ser os dejectos das montanhas a descer pelas estradas tortas. Quanto mais os miosótis, mais carros partiam para não voltar. Um dia, o velho sentiu que era certo. Os miosótis cobriam a margem do riacho como nunca se vira. Valiam por todas as vizinhanças. Eram uma vizinhança que se deixara adiada, até haver pureza bastante para que florissem francos, delicados, a refazer o mundo.

O velho pensou que nada daquilo era pouco. O início do mundo jamais seria pouco.

Valter Hugo Mãe, "As doenças do Brasil"

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