O fogo é um poder bruxo. Tem o poder de irrealizar o real: os olhos ficam enfeitiçados pela dança das chamas, os objetos em volta vão perdendo os contornos, acabam por transformar-se em fumaça. Quando isso acontece, começam a surgir, do esquecimento em que estavam guardadas, as coisas que a memória eternizou. O fogo faz esquecer para poder lembrar. Dizia sempre para os meus clientes que, em vez do divã, que lembra maca de consultório médico, eu preferiria estar sentado com eles diante de um fogão aceso. É diante do fogo que a poesia aparece melhor. Não admira que Neruda tivesse dito que a substância dos poetas são o fogo e a fumaça.
“Antigamente eu costumava propor uma troca com Deus: um ano de vida por um só dia da minha infância. Hoje não faço isso. Tenho medo de que ele me atenda. Não acho prudente, na minha idade, dispor assim dos meus anos futuros, pois não sei quantos estão ainda à minha espera…” Assim falou a Maria Alice com voz mansa, saudade pura. O fogão de lenha é lugar de saudade. Porque os fogões de lenha, eles mesmos, são fantasmas de um mundo que não mais existe.
“Quando eu era menina, lá em Mossâmedes, nas noites frias a gente se reunia na cozinha, todos assentados em volta de uma bacia cheia de brasas, os pés nos pauzinhos das cadeiras, era bom o calor do fogo nos pés frios…”
“… a mãe enrolava um pano na cabeça e dizia: ‘Vou no quintal apanhar umas folhas de laranjeira pra fazer um chá pra nós’ — e virava a taramela para abrir a porta da cozinha. O pai dizia sempre a mesma coisa, todo dia: ‘Mulher, você vai é ficar estuporada, de boca torta. Faz mal tomar friagem com corpo quente de fogo…’. Mas a mãe nem ligava. Com as canecas quentes de chá na mão — como era bom o cheiro de folha de laranja! Posso até sentir ele de novo! —, a gente pedia ao pai pra contar estórias. Ele contava. Eram sempre as mesmas. A gente já sabia. Mas era como se ele estivesse contando pela primeira vez. Vinha sempre o assombro, o medo, os arrepios na espinha.”
Aí ela parou e começou a divagar. Lembrou-se de um tio.
“Naquele tempo as pessoas eram diferentes. Pois esse meu tio tinha, na frente da casa dele, uma sala grande, vazia, que nunca era usada. Houve gente que quis alugar a sala — ele receberia um bom dinheirinho por ela. Recusou. E se explicou: ‘Não alugo, não. É dessa sala que eu vejo a chuva vindo, lá longe. Se eu alugasse, ficaria triste quando a chuva viesse…’. É, as pessoas eram diferentes…”
Houve um silêncio. Aí a memória poética se transformou em imaginação teológica.
“Eu acho que há muitos céus, um céu para cada um. O meu céu não é igual ao seu. Porque céu é o lugar de reencontro com as coisas que a gente ama e o tempo nos roubou. No céu está guardado tudo aquilo que a memória amou…”
Rubem Alves, "Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo"
Nenhum comentário:
Postar um comentário