quarta-feira, janeiro 24

Shahriar

Após a oração da alvorada, enquanto as nuvens da escuridão ainda resistiam frente à poderosa investida da luz, o vizir Dandan foi chamado para um encontro com o sultão Shahriar. A serenidade de Dandan desapareceu. O coração paterno estremecia à medida que vestia as roupas e murmurava: "Agora saberemos o resultado... Seu destino, Scherazade".

Seguiu pelo caminho que subia a montanha, montado num velho rocim e acompanhado por alguns guardas. À frente deles ia um homem carregando uma tocha, em um clima que irradiava orvalho e uma leve friagem. Três anos haviam se passado em meio ao medo e a esperança, a morte e a expectativa; três anos se passaram com a narração de histórias, e por causa dessas histórias a vida de Scherazade se estendera por três anos. No entanto, como tudo, as histórias haviam chegado a um fim, haviam terminado ontem. Portanto, que destino estaria a sua espera, querida filha minha?

Entrou no palácio que se equilibrava no alto da montanha. O mordomo o conduziu a uma sacada situada nos fundos, com vista para um imenso jardim. Shahriar estava sentado à luz de um lampião: a cabeça descoberta, o cabelo preto abundante, os olhos brilhantes no rosto comprido e uma vasta barba esparramada no alto do peito. Dandan beijou o solo diante dele, sentindo, apesar de sua longa convivência, um secreto temor daquele homem cujo passado estava cheio de severidade, crueldade e sangue de inocentes.

O sultão fez um sinal para que fosse apagado o único lampião.

A escuridão tomou conta e os espectros das árvores que exalavam uma fragrância perfumada foram lançados na semi-obscuridade.

- Que fique escuro para que eu possa ver a luz se derramar - murmurou Shahriar.

Dandan percebeu um certo otimismo.

- Que Deus conceda a Sua Majestade tudo o que há de melhor na noite e no dia.

Silêncio. Dandan não conseguiu discernir nem satisfação nem raiva por trás de sua expressão, até que o sultão disse calmamente:

- Nossa vontade é que Scherazade permaneça nossa esposa. Dandan ergueu-se depressa, curvou-se diante do sultão, beijando-lhe a mão num agradecimento tão sentido que lhe trouxe lágrimas aos olhos.

- Que Deus o proteja em seu reinado para todo o sempre.

- A justiça - disse o sultão, como se recordasse suas vítimas - possui métodos díspares, da espada ao perdão, e Deus tem Sua própria sabedoria.

- Que Deus possa guiar os passos de Sua Majestade até Sua sabedoria.

- As histórias dela são a magia do bem - disse ele, encantado. - Elas revelam mundos que convidam à reflexão.

O vizir ficou subitamente embriagado de alegria.

- Ela me deu um filho e meu espírito agitado se acalmou - disse o sultão.

- Que Sua Majestade possa desfrutar da felicidade, aqui e na eternidade.

- Felicidade! - murmurou bruscamente o sultão.

Dandan ficou preocupado, por alguma razão. Soou o canto dos galos. Como se estivesse falando consigo mesmo, o sultão disse:

- A própria existência é a coisa mais inescrutável da existência.

Mas o seu tom de perplexidade desapareceu quando exclamou:

- Olhe! Lá!

Dandan olhou para o horizonte e o viu incandescente da santa alegria.

Naguib Mahfouz, " Noites das mil e uma noites"

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