De mais de um sobrado velho do Recife se conta a mesma história. De alguns se diz que, em noites de escuro, se ouve ruge-ruge de sedas, som de piano de cauda tocando música do tempo antigo, passos de danças em salas cheias de sombras de bacharéis e iaiás pálidas; e da capelinha de um deles, o sobradão, demolido há poucos anos, do sítio da Capela, muita gente jura ter visto sair à meia-noite uma moça muito branca, vestida de noiva, montada num burrico tristonho. Talvez a filha do rico senhor Bento José da Costa sendo raptada pelo ousado revolucionário de 17 que acabou mártir.
Vários são os antigos sobrados do Recife onde se acredita ainda haver dinheiro enterrado e até esqueletos de gente emparedada como no romance do velho Carneiro Vilela. Daí as histórias de visagens e de ruídos estranhos, ruas inteiras agitadas por uma como dança-de-são-guido: a dança do medo dos vivos a almas-do-outro-mundo. Ou aos mal-assombramentos, como diziam os antigos. Uma canção hoje esquecida chegou a exprimir esse medo em palavras simples:
Vê-se a cidade agitada,
Todas as velhas rezando,
As criancinhas gritando
E a polícia agitada,
É a casa mal-assombrada!
Nem mesmo hoje, o Recife de igrejas do tempo da Colônia e de restos de casas de ar ainda mourisco, com janelas de xadrez e telhados quase pretos de velhos por onde, em noites de lua, deslizam gatos que parecem de bruxedo, perdeu de todo o seu ambiente da era colonial, quando o feitiço, a cabala dos judeus, o medo às assombrações, o terror dos Cabeleiras, enchiam de grandes sombras o burgo inteiro. As ruas tanto quanto o interior dos sobrados.
O Recife de hoje, donde a luz elétrica e o progresso mecânico não conseguiram expulsar de todo essas sombras e essas visagens, essas artes negras e essas bruxarias, ainda tem alguma coisa do antigo. Seus grandes sobrados vêm resistindo aos arranha-céus como senhores arruinados da terra a intrusos ricos. Demolidos, às vezes parecem continuar de pé como se tivessem almas fazendo as vezes dos corpos. Almas não só de pessoas mas de casas inteiras parecem vagar pelo Recife. Almas de sobrados. Almas de igrejas. Almas de conventos velhos que não se deixam facilmente amesquinhar em repartições públicas. As almas dos três arcos estupidamente postos abaixo.
Outras casas, outrora célebres pelo seu mistério, são agora casas banais. Desencantadas, só fazem medo a menino bobo ou a moça dengosa. Nem parecem ter sido o terror até de soldados. De soldados armados de facão rabo-de- galo e capazes de terríveis lutas corpo-a-corpo com capoeiras: mas não com almas-do-outro-mundo.
O sobrado chamado da Estrela foi uma dessas casas por algum tempo misteriosas e terríveis. Ficava à esquina de velha travessa do tempo em que havia hierarquia nesta como noutras coisas: rua, travessa, beco, viela. Prédio de dois andares, a sua construção, sem ser muito antiga, datava de mais de um século, quando seu assombramento começou a alarmar a gente de São José.
Foi seu proprietário durante anos Antônio Francisco Pereira de Carvalho, conhecido por Carvalhinho, que, por sua morte, deixou-o, como era elegante na época, para a Santa Casa de Misericórdia do Recife, da qual era mordomo. Mas foi Carvalhinho proprietário sempre ausente desse seu sobrado. Não chegou a identificar-se com o prédio de que era dono.
Habitou-o quase heroicamente na fase em que o sobrado foi um dos terrores de São José, a família Luna, que era de gente brava. Em 1873, quando os Lunas se mudaram para a casa, na qual haveriam de viver anos, arrepiados com as muitas visagens que diziam lhes aparecerem a todo instante, mas sem se deixarem vencer por esses horrores do outro mundo, o prédio passara vinte anos fechado. Com o tal papel tristonho de “aluga-se”. Pretendentes, muitos. Mas os boatos eram de aterrorizar qualquer cristão. Ninguém se animava a ocupar sobrado tão cheio de mistérios. E as “visagens”, as “assombrações”, as “almas- do-outro-mundo” é que durante anos se tornaram donas absolutas do velho sobrado sem serem incomodadas pela intrusão dos vivos.
Diz-se que a família Luna, durante o tempo em que morou no prédio, não sossegou uma noite. Ou fosse por sugestão, ou por isto, ou por aquilo, a boa gente via vultos, ouvia quebrar de louças na cozinha e abanar de fogo no fogão. Era como se a cozinha burguesa fosse uma cova de bruxas de Salamanca. E quando anoitecia, mãos que ninguém enxergava, mas que deviam ter alguma coisa de garras de demônios, jogavam areia sobre as pessoas da casa. Obra, evidentemente, de espíritos dos chamados zombeteiros, pensavam os Lunas e os vizinhos dos Lunas.
Viveram, entretanto, esses corajosos Lunas anos e anos em casa tão incômoda. Perturbados com a misteriosa areia nas próprias horas de jantar e cear. Mas de alguma maneira acomodados às diabruras não sabiam se de almas penadas, se do próprio Cafute. O aluguel do sobrado parece que era baixo e os Lunas talvez preferissem os horrores de casa encantada ao tormento de terem que pagar aluguel alto.
Das “almas penadas” do sobrado da Estrela chegou a pensar um recifense velho que fossem almas de estudantes de velha república. Almas de boêmios ou gaiatos que por muito terem se mostrado nus das varandas a mocinhas pobres da vizinhança, escandalizando as coitadas das criaturas de Deus com sua nudez obscena; e por muito terem furtado frutas ou doces de tabuleiros de baianas velhas; ou por muito terem judiado com moleques ou molecas inermes, para quem “doutores” eram quase deuses de casaca e cartola — estavam agora purgando seus pecados.
Diz-se dos Lunas que só deixaram o sobrado depois de terem desenterrado dinheiro. Uma noite, certa pessoa da família teve um sonho. Sonhou que num buraco do socavão da escada do primeiro andar havia “coisa” enterrada. Coisa, isto é, ourama. Ourama do tempo dos reis velhos. Pela manhã contou o sonho aos outros Lunas. Dinheiro enterrado? Devia ser a causa das assombrações, das visagens, dos psius.
Mas aberto um buraco no socavão, em lugar de moedas de prata e ouro só teriam achado os pacientes Lunas um punhado de miseráveis cédulas de dois mil-réis. Troça de estudantes do tempo em que o prédio fora arremedo de república? Explicaram os Lunas à gente vizinha e abelhuda da rua que não: que eram cédulas furtadas por um dos antigos caixeiros da mercearia que um deles mantinha no andar térreo do edifício. Façanha de caixeiro vivo e não de estudante morto. Um desapontamento. O que parecera romance de alma-do-outro-mundo teria sido simples história de furto de cédulas de uma simples mercearia por um dos seus caixeiros. Nada mais. Em vez de tesouro, simples punhado de cédulas de dois mil-réis. Pelo menos foi o que os vizinhos ouviram dos Lunas ter se verificado no prédio misterioso.
Quando a família Luna mudou-se do sobrado, achou-se, porém, grande buraco no socavão da escada do primeiro andar. Não parecia ter abrigado apenas miseráveis cédulas de dois mil-réis. E sim ourama, e da boa. Os Lunas que, durante anos, haviam convivido quase heroicamente com almas-do-outro- mundo, não confirmaram o boato de que dali tivesse sido desenterrada botija com dinheiro: muita prata, muito ouro, muita moeda, sussurrava a vizinhança. Apenas um punhado de cédulas sujas — insistiam em dizer os bravos moradores da casa mal-assombrada. E até hoje ninguém sabe o que de fato se passou no sobrado chamado da Estrela, nos últimos anos do Império, um dos mais célebres do Recife pelo seu mistério de casa às vezes comicamente mal-assombrada.
Gilberto Freyre, "Assombrações do Recife Velho"
Nenhum comentário:
Postar um comentário