Há obras literárias sobre as quais se pode afirmar que existe um consenso (quase) universal a respeito de sua relevância histórica. Elas oferecem uma visão profunda da complexa realidade humana, independentemente da época ou cultura em que foram escritas.
Nessa categoria podemos encontrar a Bíblia Sagrada, A Divina Comédia, de Dante Alighieri, Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, os romances e contos de Dostoiévski, Tolstoi, Charles Dickens, Thomas Mann, Kafka e Borges, as obras de Shakespeare e Sófocles, Ilíada e Odisseia, de Homero, Eneida, de Virgílio, e por aí vai.
Nesses livros, e em centenas de outras obras, são exploradas as profundezas do coração humano, que não mudou essencialmente ao longo da história.
Neles, estão gravadas a sabedoria e a experiência humana acumuladas ao longo de milênios, o consenso sobre o que é essencialmente humano, com sua carga de verdade e mistério.
E justamente porque contribuem para revelar essa verdade atemporal do ser humno, estas obras literárias oferecem um efeito curativo para quem as lê.
Uma capacidade que não passou despercebida por povos antigos.
Mas, afinal, até onde podem chegar os efeitos benéficos, inclusive terapêuticos, da grande literatura?
A função da catarse na tragédia grega não era diferente: com a “palavra bela” (logos kalós) se buscava purificar o espectador de suas próprias concupiscências.
Vê-las projetadas nos personagens da peça ajudaria a aliviar tensões e moderar a hybris (termo grego que remete a um excesso de ambição, orgulho, que levaria em última análise à ruína do transgressor), ou seja, colocaria os sentimentos mais elementares em seu lugar.
No diálogo platônico Crátilo, é dito que belos discursos, palavras bonitas e apropriadas, são capazes de causar sophrosyne (isto é, serenidade) na alma do doente.
Assim, ele pode permanecer katharòs katá ten psykhen, com a alma purificada.
Algumas décadas depois, Aristóteles ensinava que o espetáculo da tragédia é capaz de produzir essa operação catártica na alma do espectador, esse efeito purificador dos belos discursos.
Os pitagóricos, que consideravam que a música elevava e purificava a alma, estabeleceram assim “uma espécie de farmacopeia musical” para os diferentes tipos de paixões e momentos do dia.
E, dando um salto até a época contemporânea, o poeta espanhol José Hierro via na atividade poética "a tarefa de cicatrizar / de curar com palavras novas / as feridas antigas".
Para fins terapêuticos, o gênero pelo qual tem havido maior interesse é o narrativo.
À medida em que a doença revela um bloqueio interior, o filósofo alemão Walter Benjamin se pergunta "se toda doença não seria curável desde que se deixasse levar suficientemente longe pela corrente da narrativa... até a foz".
Os românticos chegaram à conclusão de que o ser humano não pode viver em um mundo totalmente “desiludido”, sem palavras no sentido da natureza e dos fatos, em um clima completamente imanente, sem lugar para as “narrativas” que oferecem consolo, como a religião, os rituais, a conexão com o todo, com o cosmos.
Neste sentido, o filósofo alemão Martin Heidegger também intuía que a natureza e o potencial da linguagem, especificamente da poesia, sustentam o seu poder de reconexão com o todo, com o sobre-humano, com o cosmos.
Alinhado com o que acreditava a geração romântica do final do século 18, se trataria de dar “voz aos desejos perenes do coração do homem”.
E apelavam à poesia, às emoções que ela provocava, porque a razão por si só é incapaz de acessar a totalidade da pessoa, abrangendo-a e compreendendo-a.
O poeta italiano Giacomo Leopardi acreditava que a razão tende a ocupar toda a alma. Baseada em qualquer princípio, leva-a às últimas consequências, mesmo quando contradiz a natureza: “A razão é muitas vezes uma fonte de barbárie e, em excesso, sempre é”.
A razão destrói as ilusões. Sem elas, os seres humanos não podem viver, e isso nos leva ao seu inverso, a barbárie. Para Leopardi, a razão deveria lançar luz, mas não causar um incêndio.
O poeta alemão Novalis já havia advertido que “a poesia cura as feridas que a razão inflige”.
Muitos poetas contemporâneos também manifestaram a mesma opinião sobre a função integradora das diferentes facetas do ser humano que a poesia tem. Assim se expressou Paul Claudel em sua carta a Alexandre Cingria:
“A poesia sente que cabe a ela recompor tudo, (…) encontrar mais uma vez o homem inteiro na unidade integral e indissolúvel da sua dupla natureza”.
E também o poeta espanhol Jaime Gil de Biedma:
“A poesia consiste em integrar fatos e objetos de um lado e significados do outro, e integrá-los em uma identidade que é ao mesmo tempo o fato, o objeto e o significado.”
Da mesma forma, os teóricos da expressão poética manifestaram seu consenso sobre a capacidade reconciliadora da poesia:
“O aspecto poético de uma poesia consiste em um modo coerente de sentimento e em um modo valioso de intuição. […] A intuição consiste em uma visão penetrante da realidade, na descoberta de um sentido mais profundo das coisas do que o sentido prático que nosso intelecto oferece."
As pesquisas realizadas sobre a leitura como psicoterapia são relativamente escassas — e acabam sendo bastante genéricas. Além disso, a colaboração interdisciplinar entre a literatura e a psicoterapia é relativamente recente.
Por outro lado, vale a pena olhar para trás, ler e reler essas obras-primas da linguagem humana, para captar a sua virtude curativa da alma, uma virtude que, sem ter sido comprovada cientificamente, foi experimentada por muitos ao longo da história, devido aos seus efeitos físicos, psicológicos e emocionais.
Vale lembrar que o que chamamos de poético não é exclusivo do gênero literário conhecido como poesia.
A intuição poética é encontrada em romances, ensaios, obras filosóficas e históricas. Para o poeta inglês Percy B. Shelley, por exemplo, “Platão foi essencialmente um poeta” — e “os grandes historiadores, Heródoto, Plutarco, Tito Lívio” também foram poetas.
O poeta, na visão de muitos autores, é um grande terapeuta, porque todos estamos feridos — e é ele quem consegue apontar onde está a ferida, algo essencial para poder remediá-la. E diferentemente dos medicamentos, a poesia não tem data de validade.
Como escreveu Adam Zagajewski, “a poesia — naturalmente, apenas a grande, a excelente — é uma das artes que menos ficam amareladas”.
Quão improdutivo será então o prazer improdutivo de ler poesia, como diria a polonesa vencedora do Prêmio Nobel de Literatura, Wisława Szymborska?
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