quarta-feira, maio 15

Irmã Água

Laudato sii mio signore per suora acqua, la quale è molto utile et humilde et pretiosa, et casta.
São Francisco, Il Cantico del Sole


O tanque está vazando pelo lado esquerdo. O reboco de cimento descascou-se e caiu em farelos, e a argamassa entre os tijolos cedeu lentamente ao teimoso empuxo da água. Quando o nível da pequenina enchente coincide com as frinchas da parede, os filetes escorrem, brilhantes, para o chão, alastrando uma nódoa escura e úmida que cresce duas vezes por dia. Primeiro a mancha era menor e a areia sorvia o líquido não permitindo ampliação. Agora, com a sequência do aguamento regular, há um trecho vagamente arredondado, vezes um polígono estrelado, ressaltando no solo cinzento do quintal, com uma orla mais densa e o centro escavando-se devagar e mesmo conservando um brilho de água parada.

Água escorrendo criou um novo centro de interesse e de vida. Não é água do tanque com as folhas, o lodo verde-negro e na superfície o vagaroso perpassar de Dica, com as seis patas altas como andaimes, passeando sem molhar-se. Água correndo no chão, dando outra cor, modificando a paisagem rasteira, alargando-se constantemente com a contribuição serena das seis a quinze horas. Os fios, com a força de impulsão, escorregam descendo as ladeiras minúsculas, espalhando as tonalidades diversas, vencendo e dissolvendo os torrões de barro, rasgando canais de brinquedo, fazendo curvas como um rio, detendo-se ante pedrinhas inarredáveis mas ladeando, cercando-as de dois braços trêmulos e continuando a jornada enquanto recebem o reforço vindo das brechas imperceptíveis. Na outra hora já o terreno consente mais fácil passagem, disciplinado pela água anterior e os canais se afundam, em milímetros orgulhosos, sacudindo a cabeça de água para frente, conquistando polegadas no rumo da telha enterrada onde residem as baratas da rainha Blata. Já existe mesmo uma formação de lama que é a franja daquela força em proporção mínima. A absorção da terra limita a expansão do território úmido. Todo o processo erosivo deu um aspecto imprevisto de cordilheiras, planícies, banhados, caminhos íngremes mesmo um complicado sistema intercomunicativo de fiozinhos de água, que parece ter sido copiado dos postais do Tirol ou da Suíça. Mas todo este mundo medirá metro e meio e as altitudes assombrosas irão aos cinco centímetros. Mas é um mundo já respeitado pelas formigas pretas e as aves preferem esta região ao tanque oceânico para a alegria de molhar as patas.

Para fechar o círculo irregular as cores se tornam mais claras relativamente aos graus de secura, indo numa gradação de tonalidades até confundir-se como o solo comum do quintal.

Das seis às sete e das quinze às dezesseis lá vem água visitando seus novos domínios, ensopando-os, afundando as estradas, dizendo-se senhora daquele trecho que era jurisdição mansa e pacífica da rainha Blata, usado para banhos de sol ou vadiagem ginástica.

Deve ter sido um cataclismo para os moradores do subsolo. Transformação absurda, verdadeira revolução catastrófica, aquela inundação que ninguém havia previsto, obrigando mudança imediata. Às pressas, numa improvisação de todos os serviços de transporte e busca para afixação noutro pouso, com os incômodos de arranjo e colocação totais. Uma multidão de besourinhos, de cinco milímetros para baixo, emigrou desordenadamente, aos bandos dispersos, numa marcha divergente e tonta, salvando-se do dilúvio sem profecia. Mesmo a boca de um formigueiro de Ata desapareceu na avalancha e a continuidade da regação aterrou-o em definitivo. Creio que a rainha Ata deve ter castigado seu serviço de meteorologia que, desta vez, “dera água”, não anunciando em tempo útil o fenômeno alagador.

Quando água deixa de correr, minutos depois, a terra se ergue num e noutro ponto, elevada e fofa, demonstrando mais uma evasão pelo caminho que o relevo de areia frouxa denuncia. Ninguém podia calcular o número de formigueiros existentes nesta área inundada. Nem quantos besouros estavam domiciliados regularmente nos limites que a água dominou. Não havia sinal pelo exterior que as moradas estivessem instaladas ali e tantas vidas ligassem a rede dos hábitos àquele local de poucos palmos de extensão. Só depois da água banhar o terreno e torná-lo úmido e diverso do estado anterior é que o recenseamento evidenciou o número incontável dos habitantes tranquilos do recanto.

A água possibilitou uma situação favorável ao aparecimento de plantinhas humildes, vergônteas que surgiam tímidas como pedindo desculpas pelo seu atrevimento de nascer. Espécies de capim, com folhas duras e finas como pontas de lança. Depois um arremedo de bredo de palmas pequeninas e ásperas, bronzeadas. Espantosa força germinativa. A semente esperara anos e anos a sua ocasião favorável para romper a camada e pedir um pouco de sol.

Em 1946 os americanos fizeram saltar as usinas Krupp em Essen. Os edifícios imensos, salas infinitas, oficinas tentaculares onde escorria o aço fundido como prata líquida, os altos-fornos imponentes, os martelo-pilões poderosos, um conjunto de milhares de toneladas de cimento armado, ferro e aço mudou-se numa série de montões de ruínas precoces, símbolos duma atividade condenada pelo vencedor. Durante cem anos a maquinaria possante fizera estremecer o solo em quilômetros derredor, no estridor da tempestade em que se fundiam e calibravam os canhões temerosos. Derrubada a cidade Krupp, na primeira primavera subsequente os destroços cobriram-se de malvas azuis, brancas, lilases. No fundo da terra sacudida pelas máquinas de guerra e aquecida pela irradiação dos fornos sempre acesos estavam as malvas intactas em sua força, aguardando o minuto da ressurreição. Quando as usinas Krupp caíram, as malvas ressurgiram como eram antes, com as mesmas cores, formatos e dimensões, inalteradas.

Fiquei pensando que debaixo dos edifícios que governam o mundo há sempre uma semente adormecida, sonhando com sua libertação para reaparecer e espalhar as pétalas esquecidas dos olhos humanos. Os palácios jamais admitirão a possibilidade de existir uma planta, quarenta ou vinte metros depois do seu peso dominador, espreitando que a tonelada opressora desapareça para renascer e florir.

Naturalmente todos sabem que os insetos não bebem água. Não é bem assim. Não bebem água no tanque, porque alguns, pela sua pequenez, não conseguem romper a resistência da superfície que lhes deve parecer uma lâmina de marfim. Na terra molhada, no barro porejante e úmido, é possível sorver com a tromba solícita as gotículas. Somente agora vejo os bandos de borboletas, miúdas, amarelas com laivos azuis, paradas no pequenino charco, asas imóveis, desalterando-se.

A terra molhada tem revelado um mundo estranho. Besouros desenhados com um rigor geométrico e outros com intenções abstracionistas e perturbadoras, pequeninos, luzentes, apressados, de todas as cores, todos lindos, adejando as duas antenas inquietas sobre a cabecinha redonda e negra de obstinados. Uns de pernas invisíveis, altos outros, aranhas esquisitas, com andar aos saltos sobre presas que ninguém vê, insetos com as patas posteriores em eterno balanceio, como estabelecendo equilíbrio, coleópteros esguios, magros, rápidos, passando com um ar de quem deixou uma conferência internacional e vai escrever o relatório para o governo que o enviou, pulgões branquicentos, lesmas de dorso escuro como lama e o anverso parecendo âmbar, paquinhas, grilos-d’água, abrindo túneis com as patas fortes como braços de Sansão e, às vezes, num listrão alvadio, preguicento, escorregando de um orifício para reenterrar-se noutro, grandes minhocas de vida misteriosa e subterrânea. Há quase sempre um grupo de minhoquinhas ou vermes curvos como parênteses, agitando-se como se fizessem ginástica para rins, juntos, atrapalhados com os corpos como traje inusitado e novo, atraindo o voo imediato e fulgurante do bem-te-vi ou da lavadeira. Devem ser pitéus excepcionais porque, via de regra, as aves levam no bico, para os ninhos, comida inesperada para os filhos de bico aberto.

É muita imaginação pensar num rio subitamente atravessando um deserto.
Provocaria uma revolução em círculos concêntricos, cada vez maiores na proporção do afastamento do centro. Flora, fauna modificar-se-iam determinando a vinda e nascimento de novas espécies vegetais e animais. E a zona de conforto faria a movimentação de vidas e interesses sem conta, encadeadas no brusco aparecimento de alimento certo em ponto fixo. Se este filete de água de um tanque, vazando, trouxe tantos motivos para o ciclo destas existências, que será no macrocosmo o que neste microcosmo vive?

Curiosa foi a reação do mandarim Fu. Sapo terrestre, anfíbio mais honorário que efetivo, não resistiu à tentação da terra molhada que ele goza nas raras fugidas, capengando, para a lagoa distante. Ali perto a umidade seduziu-o e, ao anoitecer, Fu deixa a residência e vai, não aos saltos mas no seu andar arrastado, de trejeito custoso, atravessar o trecho que água corrente refrescou.

Põe as patas espalmadas e largas na areia molhada num sabor de divertimento difícil. Como a fugida infantil para um banho no rio ou na maré. A leve camada de lama gruda-se-lhe entre os dedos, valendo uma carícia. Atravessa os curtos dois palmos deliciosos. Para na outra margem. Volta-se com lentidão majestosa. Fica imóvel, olhos radiosos, batendo o papo, engolindo vento, vivendo sua vida. É um volúpia consciente a que dedica horas. Vezes abocanha no ar algum mosquito atrevido ou asas que trouxeram o dono para perto, interrompendo-lhe a cisma deleitosa. Não deixa facilmente o far-niente de meditação e alegria silenciosa. É talvez a concentração mais digna entre as homenagens à água eterna onde fora gerado e amou, roçando, comprimindo o peito e o ventre no frescor do solo ressumante.

Não discuto que a posição é cômoda para a caça e esta procura justamente o ponto novo. Os insetos miúdos que residem nos arredores são salteados ao sair da porta. Deduzo que existe uma atração em calcar terra úmida mesmo para os pesados e lentos coleópteros que, sem necessidade aparente, vão atravessando a faixa, deixando as linhas ponteadas de seus rastros. As baratas redondas, ásperas e escuronas, sem a quitina protetora e outras, grandes, levemente amareladas, de asas friccionantes e rumorosas, cabeça negra, rondam a mancha do futuro lameiro liliputiano. Devem encontrar a massa de mosquitos quase impalpáveis e esvoaçantes as lagartixas noturnas. Mas as baratas e baratonas que vão fazer no pequeníssimo banhado de bonecas? Só o mandarim Fu, em pose de cálculo especulativo, informará.

Curioso é constatar que unicamente as formigas evitam transpor o caminho molhado. Continuam teimando em reabrir a boca do formigueiro que, duas vezes por dia, era obstruído pela areia molhada. Depois desistiram e o caminho volteou pelo tanque, do lado direito onde o mandarim Fu possui sua mansão. Nunca as vi varando a estrada borrifada, isolada ou nas filas intermináveis em horas de serviço. Nas curtas horas em que água escorre há como uma fronteira intransponível, respeitada, indevassável.

As plantinhas nascidas não ficaram despovoadas. As de sua espécie possuem familiares que as procuram para sugar a seiva ou roer as folhinhas tenras. A seiva é diminuta e tênue mas as folhinhas tentaram umas lagartas esverdeadas, de cabeça roxa e pataria colorida de negro. Não demoraram muito tempo na vilegiatura porque o bem-te-vi e a lavadeira acabaram com o mostruário vivo.

Estas lagartas costumam acampar nas folhas mais baixas dos crótons mas sendo verdes confundem-se perfeitamente aos olhos técnicos dos pássaros. Nas plantinhas o verde era muito claro e vibrante, destacando o verde-escuro das lagartas, dando-lhe fundo que chamou as aves como uma isca irresistível.
Em certas horas há um inteiro corpo de baile e mosquitinhos, executando uma dança ascensional e descendente no mesmo eixo, quase batendo no chão, dão a impressão sugestiva de cada unidade ocupar uma dada posição no ar sem que deixe a simetria rígida da formatura vibrante e movimentada, arabesco de tapete persa. Este ballet justifica a assistência carinhosa de Vênia e toda uma corte de lagartixas, o mandarim Fu e intrusões súbitas do bem-te-vi, da lavadeira, dos canários e dos xexéus. Deve ser um bailado nupcial, um alarde festivo ao sexo, com a participação de damas e galantes que se candidatam não apenas à junção feliz mas às gargantas do público aplaudidor.

Debaixo da sombra fresca dos tinhorões, das taiobas com as folhas lembrando orelhas de elefante, há uma população que reside pendurada no caule, entre as folhas largas e no tronco. Estes pacatos moradores estavam mais ou menos livres das aranhas rendeiras. Com aquele espalhafatoso rodeio de mosquitos bailarinos, as aranhas aproveitaram imediatamente o mercado e uma série de teias espalhou-se nos arbustos e crótons próximos. Os mosquitos não são permanentes e a percentagem de vítimas é grande mas não diária. Quem ficou fornecendo contribuição forçosa às teias cavilosamente estendidas em situações estratégicas foi justamente o povo inocente e confiado dos tinhorões e das taiobas que, sem cuidar da maldade do mundo, cai nas malhas finas e resistentes das rendeiras esfaimadas. O mandarim Fu que jamais arriscara verificação por aquele quadrante começou uma viagem de inspeção com desastrosos efeitos locais. Até mesmo, sinistro, armado em guerra, audaz e bruto como um barão feudal, Titius fez-se notar, espalhando terror.

Água, depois de meses de insistente deslizar, atingiu o palácio funcional da rainha Blata, escavando um abismo de centímetros ao pé da telha e enchendo de água, subsequentemente, a buraqueira. Esta água parada forneceu moradia aos mosquitos indesejáveis do gênero tenoresco, cantores e divulgadores de moléstias que não interessavam ao canto de muro.

As frinchas do tanque alargaram-se e a irrigação ampliou sua área. O manto escuro e peguento alcançou o muro. Nasceram os “pega-pinto” (nictagináceas) fazendo, com o tempo, pequenos bosquezinhos frondosos. Hospedou um piolho que fez a delícia das aves e estas dedicaram horas na busca minuciosa e farta. Por causa desta busca outros vegetais apareceram, trazidos nos excrementos, utilizando a terra que se tornara fecunda. Pimenteira, goiabeira e mamão deram réplica ao renque que vivia no outro extremo. A pimenteira cobriu-se de frutinhas vermelhas como coral e, pela primeira vez, o canto de muro ouviu o sabiá cantar, beliscando as pimentas.

Também a constante aguação enrijou os tinhorões e a taioba orelha-de-elefante, tornando-os fortes e frondosos. A fauna cresceu sob sua proteção. Os filhos e vassalos de Quiró fizeram visitas noturnas a uma zona outrora deserta mas agora povoada e sonora. O velho tronco, estirado e morto, lavado pela água insistente apodreceu, arrastando os insetos diferentes, roedores de madeira, coleópteros imponentes que tentaram até Sofia que os enxergou numa noite de luar, embaçado e sentimental.

O fio de água esbarrou no muro e as raízes confusas das trepadeiras agradeceram o benefício. Um ramo baixou, nascido paralelo ao chão, coleando pelas pequenas elevações, e ligou-se ao tinhorão, abrindo a graça das flores em cacho, vermelhas e brancas. O beija-flor inaugurou-as com seu longo bico matutino. As folhas caindo cobriam o filete de água e eram cobertas por ele no dia imediato. Sensivelmente a terra adubava-se, sacudindo outras plantas, outras frutas reduzidas e que tinham expressão gustativa para os pássaros que as espalhavam. E porque ficavam comendo ao redor delas, outras espécies surgiam, sacudidas nas fezes, empurradas para o solo pela água singela e pelas folhas humildes que se tornavam negras e pesadas de umidade.

Quando os mosquitos repetiam seu bailado de morte feliz, já o número de assistentes era vultoso e eficiente. Fu já podia ocultar-se na sombra de folhas espalmadas e aproximar-se sem ser visto de besouros ornamentais. Licosa e Titius deram mesmo a honra de estender por ali seus territórios de caça noturna. Do tanque ao muro era a pista de corrida da lavadeira. O depósito de água ficou reservado para beber e banhar-se. Não tinha a dimensão em superfície daquela praia sem água mas convidativa e fácil.

Dica, aranha-d’água orgulhosa, foi a única a não deixar o velho domínio. Nunca pôs uma de suas seis patas compridas fora do tanque para visitar os melhoramentos do canto de muro.

A infiltração deve ter procedido a modificações curiosas no subsolo. Deverá existir outros moradores atraídos pela nova temperatura e a região será o caminho real de espécies que amem a umidade relativa. Mas tudo dentro de uma escala de valores de milímetros e centímetros, um pequenino mundo humilde que passaria despercebido para os olhos comuns, seduzidos por outras tentações sensíveis.
O rumor dos zumbidos, chilreios, sussurros abafados, estalidos de gravetos tombados, folhas secas, levava a doce sonoridade silenciosa do fio de água escorrendo na areia cinzenta. A solidão se enchera de asas, teias, ciladas, tocaias, armadilhas, ânsias, júbilos, decepções.

O suave milagre fixador da vida e da batalha sem pausa fizera a Irmã Água humilde e útil, preciosa e casta, molhando a terra sem nome de um canto de muro tranquilo.

Luís da Câmara Cascudo, "Canto de Muro"

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