terça-feira, maio 7

O sonhado

Careço de realidade, temo não interessar a ninguém. Sou um farrapo, um dependente, um fantasma. Vivo entre temores e desejos; temores e desejos que me dão vida e que me matam. Já disse que sou um farrapo.

Jazo nas sombras, em grandes e incompreensíveis esquecimentos. De repente me obrigam a sair à luz, uma luz cega que quase me assegura a realidade. Porém logo se ocupam deles mesmos e me esquecem. Novamente perco-me na sombra, gesticulando com ademanes cada vez mais imprecisos, reduzido ao nada, à esterilidade.

A noite é o meu próprio império. Em vão trata de afastar-me o esposo, crucificado em seu pesadelo. As vezes satisfaço vagamente, com agitação e torpeza, o desejo da mulher que se defende sonhando, encolhida, e que finalmente se entrega, grande e macia como um travesseiro.


Vivo uma vida precária, dividida entre estes dois seres que se odeiam e se amam, que me fazem nascer como um filho deformado. Não obstante, sou belo e terrível. Destruo a tranquilidade do casal, ou a inflamo com o mais cálido amor. As vezes me coloco entre os dois, e o abraço íntimo me faz recobrar, maravilhoso. Ele percebe a minha presença e se esforça para aniquilar-me, para tomar o meu lugar. Mas finalmente, derrotado, exausto, vira as costas para a mulher, devorado pelo rancor. Permaneço junto a ela, palpitante, e a cinjo com meus braços ausentes que pouco a pouco se dissolvem no sonho.

Deveria ter começado dizendo que ainda não acabei de nascer, que sou gerado lentamente, com angústia, em um processo longo e submerso. Eles maltratam com seu amor, inconscientes, minha existência de nonato.

Trabalham longamente a minha vida entre seus pensamentos, mãos torpes que se empenham em modelar-me, fazendo-me e desfazendo-me, sempre insatisfeitos.
Porém um dia, quando por acaso derem com minha forma definitiva, escaparei e poderei sonhar-me eu mesmo, vibrante de realidade. Afastar-se-ão eles, um do outro. E eu abandonarei a mulher e perseguirei o homem. E montarei guarda a porta da alcova brandindo uma espada flamejante.
Juan José Arreola, "Confabulário total"

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