sábado, janeiro 10

Limpeza na casa dos Malafaias



Em "Via sinuosa", o escritor português Aquilino Ribeiro (1885-1963), revela como se fazia a limpeza na livraria na casa solarenga dos Malafaias, “senhores da honra, distraídos por suas funções na corte”.

Recomendado pelo seu mestre, padre Ambrósio, o jovem Libório é empregado para catalogar a livraria. Segundo o padre, as recomendações eram as melhores, já que o jovem “fez a educação na livraria de São Francisco. Lá também temos livros raros e preciosos. Alguns manuseou, mas, é claro, só no interesse de bibliófilo. Paleógrafo não é, e não sei se os manuscritos da casa são tantos e remontam a era que seja preciso recorrer a um perito. Quanto aos caracteres góticos são-lhe tão familiares como os romanos. À falta de pior, foi numa edição do século XV que estudou Horácio”.

Melhor indicação não poderia ter o jovem.“Menos de dois meses que levava ao serviço dos Mala­faias, e já o meu trabalho corria com ordem e aviamento.(...) Nas primeiras semanas, todas as manhãs, Domingos, o lacaio, ajeitava o escadote contra as estantes e, trepando arriba, com a serena azáfama dum trolha demolindo um muro, despejava sobre o tapete os séculos veneráveis. Tratados e analec­tos, sermonários e miscelâneas, malhavam em baixo impiedosamente; e, com os pergaminhos lívidos e as carneiras de tom melancólico, os fechos de bronze aber­tos e os nervos desconjuntados, pareciam-me nobres finados cuspidos da tumba. O senhor Miguel de Mala­faia, porém, recomendara:

- Atira, Domingos, sacodem o pó e sai-lhes a bicheza."

De casaco branco e cara rapada, como estava na etiqueta dum flâmulo de embaixador, Domingos construía no chão a meda de calhamaços. E, feita ela, de volta a ilustrar dez doutores e a fornecer-me ocupação para todo o dia, ia-se para a varanda espanejá-los, catar-lhes a traça, batendo-os no balaústre, passando-os ao esfregão, soprando-lhes. O seu recado era fazer guerra à poeira e grande sanha punha em servir. E, prosseguindo na sua teima idiossincrásica, de tudo lavar e brunir, ia vandalizando livros”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário