Wilson Vicente - "Rua da Mina Chico Rei" |
Esse menino está vendo agora o quanto mudou sua cidade. Já não existe mais a pequena casa onde morava com os pais e o irmão. Ficava na rua estreita por onde não passava carro, perto da delegacia. O melhor mirante da cidade era o alto do telhado, de onde se via a vida acontecer no céu e na rua, por onde passavam personagens e fatos importantes, que iriam marcar a sua vida para sempre.
Outro é o cenário da rua do comércio. Onde antes era lama no inverno e poeira no verão agora é uma avenida bem comprida, asfaltada. A sinaleira acende os sinais vermelho e verde, controlando o fluxo intenso dos carros e dos pedestres, que atravessam a avenida pela faixa, de um lado para o outro. Guardas fiscalizam os motoristas, multam aqueles que estacionam os carros em locais proibidos, rompem os sinais de trânsito de maneira imprudente. Lojas, bancos, lanchonetes. Meninos de rua, guardadores de carro, mendigos. Gente no passeio indo e vindo.
O menino quer saber por onde andam as tropas de burro, que desciam carregadas de cacau seco ensacado, na direção dos armazéns de portas largas. O desfile dos animais deixava alegres os meninos, que paravam para ver os burros andando com os passos cadenciados. Chegavam puxados pela madrinha, a mula da frente, enfeitada de guizos no peitoral, o chocalho no pescoço. Naquele desfile de cascos cadenciados, som de guizo e chocalho, a tropa dos animais inaugurava o dia com um canto metálico, que se propagava festivo na manhã luminosa.
O menino pergunta por que as tropas perderam-se na estrada, depois que dobraram a curva e nunca mais retornaram. Mudo, fico sem saber como responder à pergunta, convencido de minha impossibilidade para conhecer do tempo por que razão tudo tem que acontecer assim no seu curso invariável. Ontem seres e coisas ali estavam nítidos, definidos, eram vistos e alcançados. De repente, sem que fosse percebida a mudança, fugiam para outra paisagem, perdiam-se por trilhas e atalhos, encobertos para sempre na estrada desconhecida. Obedeciam a um ritual de indiferença do tempo passando, passando, desde não sei quando, sem que pudessem retornar das terras do sem fim.
Insiste, esse menino de olhos espertos, em ver o campinho na margem do rio onde jogava futebol com os amigos. Ele está me dizendo que quando a bola rolava pelo barranco ia cair no rio. O jogo ficava interrompido até que um dos meninos fosse procurar a bola lá embaixo, às vezes era encontrada boiando nas águas. O jogo então recomeçava nos lances aguerridos. No lugar do campinho do futebol encontramos agora o cais, que foi construído em cada margem do rio para evitar com isso que as águas derrubassem nas cheias as casas ribeirinhas, causando estragos e até mortes. Onde estão as pedras pretas que eram cobertas pelas roupas coloridas quando as lavadeiras as estendiam para secar ao sol. Espetáculo vistoso de cores que os olhos nunca cansavam de ver. As lavadeiras, os areeiros, os pescadores, os canoeiros foram para onde? As águas do rio ficaram poluídas, não existe mais peixe, ninguém se atreve a tomar banho nele, coitado, está tomado de baronesas. E o Campo da Desportiva, lugar de lazer e disputas acirradas aos domingos, com seus jogadores habilidosos no trato com a bola? A seleção amadora da cidade foi oito vezes campeã do Intermunicipal.
O menino está com os olhos úmidos e vermelhos. Desiste de continuar no passeio com o homem calvo, de rosto tristonho, que também busca um tempo que se foi com suas vozes, cores, brincadeiras. No jardim da Beira-Rio havia um coreto, fontes luminosas, árvores que abrigavam os namorados, conversando sentados no banco. Flores, muitas flores. Para não ficar mais triste com o que vê, neste instante, na paisagem com outro visual, revestido de ausências íntimas, o menino afasta-se desse homem idoso, que tem o rosto coberto de uma pequena nuvem cor de sombra.
Cyro de Mattos
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