Loui Jover |
A primeira diferença que senti entre escrever livros e escrever crônicas – trabalho novo para mim –, foi a onipresença do leitor. Nunca penso no leitor ao escrever ficção, que se cria numa redoma autossuficiente. É só quando o livro ganha o mundo que o leitor aparece de fato, de carne e osso. A relação entre o leitor de livros e seu narrador é íntima, exclusiva, intransferível, silenciosa, atemporal. O leitor de um livro é sempre um espião – abre as páginas do romance, dos poemas, dos contos, como quem espia pelo buraco da fechadura um mundo que não é o seu. Os livros vivem fechados, capa contra capa, esmagados na estante, às vezes durante décadas – é preciso arrancá-los de lá e abri-los para ver o que têm dentro. Mesmo à solta, liberto da prateleira, ao acaso da mesa ou da cadeira, a natureza do livro é sempre fechada. Jogue-o no chão: nove vezes em dez ele cairá fechado, como os gatos que, dizem, sempre caem em pé. Se cair aberto, as palavras estarão para baixo. (Não façam o teste em casa, por favor – um livro de capa amassada ou dobrada é uma vítima melancólica; é preciso prensá-lo durante 72 horas com um dicionário Houaiss para que ele se recupere, mas sempre ficará a cicatriz.)
Já o jornal são folhas escancaradas ao mundo, que gritam para ser lidas desde a primeira página. A mão do texto puxa o leitor pelo colarinho em cada linha, porque tudo é feito diretamente para ele. O jornal do dia sabe que tem vida curta e ofegante e depende desse ser arisco, indócil, que segura as páginas amassando-as, dobrando-as, às vezes indiferente, passando adiante, largando no chão cadernos inteiros, às vezes recortando com a tesoura alguma coisa que agrada ou o anúncio classificado. Súbito diz em voz alta, ao ler uma notícia grave, “Que absurdo!”, como quem conversa. O jornal se retalha entre dois, três, quatro leitores, cada um com um caderno, já de olho no outro, enquanto bebem café. Nas salas de espera, o jornal é cruelmente dilacerado. Ao contrário do escritor, que se esconde, o cronista vive numa agitada reunião social entre textos – todos falam em voz alta ao mesmo tempo, disputam ávidos o olhar do leitor, que logo vira a página, e silenciamos no papel. Renascemos amanhã.
O leitor exige como um Procon ambulante. Um dentista reclamou que, na crônica “O dentista coxa-branca”, eu denegri a “nobre profissão de odontólogo”. Outro leitor precisou que o Brasil é de fato 14 quilômetros mais largo que alto (acertei!), mas do Acre à Paraíba, e não ao Rio Grande do Norte (errei!). Um professor lembrou, com razão, que a frase “Conheci o primo exótico de uma amiga que cultivava cobras”, de uma crônica sobre animais, é ambígua. O leitor, soberano, espera do jornal o rigor da verdade, porque afinal é para isso que servem os jornais. Nesse mundo, o cronista, um falastrão compulsivo, às vezes francamente mentiroso, sofre.
Cristovão Tezza
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