Diz o horóscopo que os do signo de Áries não devem de modo algum se arriscar no dia de hoje.
Sou do signo de Áries e daqui a pouco, em plena noite, devo embarcar num avião a jato para a China. Escalas? Dacar, Paris, Praga, Omsk, Irkutsk e finalmente Pequim. Quer dizer, atravessarei quatro continentes: América, África, Europa e Ásia. É continente demais, hein!
Melhor tomar antes um chope duplo ali no bar do Lucas, defronte ao mar de Copacabana, ficar ouvindo a voz espumejante das ondas e esquecer que passarei horas e horas naquela “coisa” que às vezes a gente ouve cortar o céu tão rapidamente e com um silvo tão desesperado que quando se olha para as nuvens não se vê mais nada. Nada. A “coisa” já sumiu nas asas do vento, ah! quisera eu ter agora asas assim como os pássaros e os anjos porque voar com asas alheias e ainda com o astral contra… É melhor repetir a frase do velho soldado antes de seguir para a guerra: “Treme, carcaça, treme e mais tremerás ainda se souberes para onde vou te levar!”.
Cheguei ao aeroporto com a boca amarga, inútil pensar que o amargor vem do chope. Descansei a enorme sacola num banco, abotoei o casaco e fiquei olhando os meus sapatos de andarilha. Viver é perigoso, escreveu Guimarães Rosa. Suspirei, e voar!
A voz assim no éter avisou que teríamos que esperar mais duas horas e então fiquei pensando, as pessoas se dividem em dois grupos: as que têm medo e não escondem esse medo e as que têm medo e disfarçam. E de repente a voz da aeromoça faz estremecer a aparente paz do aeroporto, chegou a nossa vez. Seguimos em fila, silenciosos e fatais.
Na noite fria as mãos que ficaram acenando na despedida tentam afetar um entusiasmo que não existe: para trás fica a segurança da casa. A família. O travesseiro conhecido. O amigo. Pela frente, o imprevisto, o desconhecido e o mistério.
E porque amo o mistério, subo a escada e entro no avião que me parece um grande bicho solitário em meio à neblina, tão solitário quanto nós mesmos, os viajantes da noite.
Ao meu lado, Helena Silveira lança em redor o olhar aflito e aponta o vasto campo povoado de aviões. “Mas ainda assim há muita grandeza nisso tudo!”, exclama ela. Tenho vontade então de dizer que se o avião explodir no meio das estrelas a nossa morte também se revestirá de uma certa grandeza. Fico em silêncio e apenas sorrio enquanto procuro as nossas poltronas.
Fecho o cinto de segurança. Balas na boca para atenuar a pressão, algodão nos ouvidos. Mas nem todo algodão do mundo nos impedirá de ouvir o ronco do jato que precisa soprar mais fortemente na arrancada inicial, é agora um bicho palpitante, acendendo as narinas. Acendo as minhas. Pronto, num esforço maior ele decola e parece subir numa linha vertical, o silvo mais agudo. “Mas isto não é avião, é foguete!”, resmunga alguém no banco dianteiro. Recorro aos meus santos bem-amados, Valei-me meu San- to Antonio, meu São Francisco!… Fecho os olhos e penso em Sertãozinho e no carro de boi da minha meninice, ah! sei que se inaugurou uma nova era e que é maravilhoso viver numa era assim fabulosa, o homem solto num mundo sem porteiras! Mas neste instante eu gostaria de voltar ao gemente carro de boi e cochilar ao sol e ouvir aquele doce e lento ranger das rodas de um mundo sem pressa, nhem- -nhem, nhem-nhem…
A aeromoça vem perguntar com um sorriso convencional se desejo alguma coisa. Através do vidro da janela vejo o negrume cortado por relâmpagos com as nuvens em desabalada carreira no sopro da tempestade. Volto para a moça o olhar sem esperança, ela ainda pergunta o que eu quero? Descer, minha senhora, gostaria simplesmente de descer!
Peço um copo de vinho. E quando olho novamente para fora vejo um céu iluminado, palpitante de estrelas. Voamos agora sobre as nuvens e a dez mil metros de altura, a tempestade se desencadeia aos nossos pés, mas estamos muito acima das tempestades. Helena Silveira já tomou suas pílulas e agora dorme tranquilamente. Tomo meu vinho e ainda assim me sinto uma pobre coisa por entre a imensido e rolando pela eternidade.
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