É possível que na Grécia do século V tenha existido algo assim como uma “biblioteca ideal”, como atesta a coleção, perdida em boa parte, mas documentada, da biblioteca de Alexandria. Salvo em casos de perda irremissível de muitas obras da antiguidade, aquela biblioteca helenística deve ter abrigado o que a tradição chegou a considerar a grande literatura em língua grega. Aconteceu o mesmo em Roma, cujos “rolos” de escritos, mesmo quando fossem de qualidade literária menos homogênea que a grega, demonstrariam que os retores, os gramáticos e os filósofos tinham clareza sobre o que poderia ser considerado ideal –de acordo com parâmetros religiosos, estéticos, políticos e didáticos – e o que deveria ser considerado non classicus, ou seja, de pouca categoria.
Também na Idade Média estiveram em vigor vários critérios, além do concebido por Aquino, tão aristotélico — ad pulchritudinem tria requirintur: integritas, consonantia, claritas —, para considerar o que era bom, ou o ideal, e o que era secundário, graças à autoridade da complexa rede de valores própria dos longos séculos do Baixo Império Romano, e depois neolatinos, com base primeiro na teologia cristã e depois no não menos poderoso código –a partir do século XII– da sociedade de cavalaria e feudal. A produção de literatura era então tão escassa, e se encontrava tão calcada em modelos que, direta ou indiretamente, procediam do dogma cristão, que era pouco concebível a criação de poesia, teatro ou épica contrários a uma ideologia e mitos que, como a realeza, se achavam por força impregnados de símbolos e argumentos predeterminados e inescapáveis. As bibliotecas medievais – deixando de lado os clássicos conservados pelas ordens monásticas e as casas nobres – foram quase sempre representações de um mundo simbólico no qual tinham um papel muito pouco significativo as amostras “heréticas”, pagãs ou não canônicas de expressão literária.
Somente a partir do humanismo, ou de fenômenos como a invenção da imprensa, a redescoberta da grandeza das literaturas grega e latina, a consolidação das línguas vulgares, o trabalho dos tradutores e o contato frequente entre homens de letras de países muito diferentes, só então, e de um modo progressivo, a literatura proliferou de maneira extraordinária; e os marcos conceituais, ou os “campos” do literário se tornaram tão distintos que surgiu pela primeira vez, em nossa civilização escrita, uma enorme disparidade de critérios, de gêneros literários, de assuntos e de públicos leitores ou ouvintes do que começou a constituir, com muita importância e cada vez maior autonomia, o âmbito universal do literário.
A partir dos primeiros séculos modernos o panorama literário apresentou tal variedade de formas, de recursos e de regulação estética que já então poderia ter começado a disputa –tão poderosa durante o século XVIII– sobre o clássico e o moderno, o bom e o ruim, o ideal e o reprovável. Cada vez mais, escrever se tornou um trabalho independente de nossa herança clássica, e os livros, quando já eram propriamente os códices acessíveis que continuamos usando, atenderam a critérios despojados de todo dogmatismo, propensos a satisfazer diferentes gostos, amigos da novidade e da singularidade. Não resta dúvida de que os clássicos greco-latinos, e a própria Bíblia, continuaram aquilatando uma grande parte das literaturas modernas e contemporâneas –veja-se Moby Dick, de Melville, por exemplo, e até mesmo Ulysses, de Joyce—, mas esta influência, no âmbito de produções inteiramente livres, passou a se tornar somente uma referência de autoridade, um vestígio reconhecido do acervo antigo.
Biblioteca gigante na China com a metade dos livros pintados |
Harold Bloom apresentou uma, muito famosa, em seu livro O Cânone Ocidental, no qual, sem dissimulação alguma, privilegiava a literatura inglesa, e Shakespeare em especial, com a mais absoluta tranquilidade. Uma tarefa assim é sempre inútil, já que existem, em nosso continente, muitos autores e livros hoje pouco lidos, mas de grande categoria, que durante um tempo ascenderam ao cânone literário ou caíram dele por razões que costumam ser circunstanciais, ideológicas ou partidárias. Basta ver a lista dos autores premiados com o Nobel de Literatura para se dar conta de que muitos deles subiram ao Parnaso do cânone literário –como aconteceu com o parnaso cervantino– para cair dele ao cabo de poucos decênios, ou até anos: veja-se o caso de nossos Echegaray e Benavente, o os casos de R.C Eucken (Alemanha), W. Reymond (Polônia) e E.A. Karlfeldt (Suécia).
A 11ª primeira edição da Enciclopédia Britânica (1911, com dois volumes complementares de 1920), na opinião de Borges a melhor edição de todas as que foram impressas dessa enciclopédia exemplar, mal sabia nessa data quem eram Flaubert, Melville ou Hölderlin, mas dedicava a Alfred Lord Tennyson, um poeta de autoridade muito relativa, doze colunas.
Bastam esses exemplos para compreender que as listas de uma “biblioteca ideal” pecam sempre por alguma arbitrariedade e costumam ter um valor de época, reconfigurado com o passar dos anos graças ao número de edições e de leitores que um livro pode chegar a ter, pela entronização de determinados autores valorizados pela academia ou de grupos fanáticos, ou pelo reconhecimento tardio de certos valores que passaram séculos no desvão do esquecimento.
A academia, e com ela os programas de ensino da literatura em escolas e universidades, seria há muito tempo a única garantia de conservação de um critério estético em relação ao mercado e à difusão de produtos literários. Com a autoridade dessas instâncias cada vez mais invisível e ineficaz, resta supor que cada leitor possua hoje sua biblioteca de excelências. Paul Valéry já tinha essa visão, em um verbete de seus Cahiers, sob a epígrafe “Obras-primas”: “Não é nunca o autor quem faz uma obra-prima. Deve-se a obra-prima aos leitores, à qualidade do leitor. Leitor dedicado, com fineza, com parcimônia, com o tempo e uma ingenuidade armada [...]. Só ele pode conseguir a obra-prima, exigir a particularidade, o cuidado, os efeitos inesgotáveis, o rigor, a elegância, a permanência, a releitura de um livro”. Valéry se referia a leitores muito capazes, como ele mesmo, mas é possível que, neste momento, nem sequer existam esses finos leitores em termos gerais. Por conseguinte, talvez devêssemos supor que, para o leitor comum de nossos dias, não exista melhor biblioteca ideal do que aquela que ele leu com prazer e que, no melhor dos casos, em um gesto novamente beneditino, conservará em sua biblioteca até a morte.
Jordi Llovet
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