Nesse tempo não existiam galos no nosso terreiro.
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Até que um dia lá chegou um galo soberbo, fastoso, corpo real, portador de plumagem azul-verde-vermelha. Seu canto era agressivo: napoleônico. Os galos da distância cederam o passo a este outro próximo, tocável, fichável. Aproximei-me muitas vezes do galo, testando-o; ele baixava a cabeça para examinar-me, conferenciava com as galinhas-d’angola, bicando qualquer grão ou cisco; depois voltava a mim, levantando já agora a cabeça para marcar sua superioridade, talvez de tribuno, barítono, boxeador; desafiando-me a quê com a crista? O galo me atraía e repelia; eu receava que me bicasse, ou que me disparasse um jato de dejeções. Embora admirando-os, nunca me senti muito à vontade com os bichos; mesmo algumas plantas ou certos frutos, por exemplo a begônia e o maracujá causavam-me receio. Desde o começo a natureza pareceu-me hostil.
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Um dia abeirei-me do galinheiro manejando um bilboquê diante do galo; quis mostrar-lhe que o dominava, que ele seria incapaz de jogar bilboquê, jogo da moda. O galo farejou o objeto; julgando-o certamente esotérico sacudiu a plumagem, empinou a crista, abanou a cabeça rindo, um riso voltairiano, adstringente.
Polígamo que era, atacou à minha vista, alternativamente, duas galinhas carijó, cobrindo-as, contundente, claro que para me fazer despeito. Atirei o bilboquê ao chão, arma inútil, vencida.
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Declarou-se o estado de guerra fria entre as duas potências. Eu não perdoava ao galo que seu canto eclipsasse o outro, longínquo, dos galos de talvez Chapéu d’Uvas ou Mar de Espanha. Minha ojeriza aumentou ao recordar-me que o galo denunciara São Pedro na noite da entrega de Jesus Cristo à polícia.
Tratava-se portanto de um espoleta, raça de gente que sempre odiei. Chegando a situação ao clímax, decidi atuar. Uma tarde penetrei precípite no galinheiro, marchando para o adversário; fora de mim, transtornado, ignorante de que o galo era um dos bichos consagrados a Apolo, sem rodeios nem consideração pela sua caleidoscópica plumagem, a raiva aumentando-me a força, estrangulei-o, pisando-lhe ainda as esporas. Satisfeito, reconciliado comigo mesmo, senti num relâmpago o prazer concreto de existir; vi-me justificado.
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Nessa noite tornei a ouvir o canto remansoso dos galos distantes de Chapéu d’Uvas ou Mar de Espanha, preanunciador, por exemplo, da mozartiana Serenata em ré maior K. 320, especialmente na parte em que soa a trompa do postilhão. Era óbvio que aqueles galos pertenciam a outra raça, não à do quinta-coluna que denunciara São Pedro na noite da entrega de Jesus Cristo.
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