Biografias de livreiros e editores costumam valer mais pelas histórias envolvendo seus editados do que pelos lances da vida, nem sempre palpitante, do biografado. Se Hemingway, Fitzgerald e Thomas Wolfe, sobretudo estes, não tivessem caído em suas mãos, na Scribner’s, o insípido cotidiano de Max Perkins renderia, no máximo, um perfil. A rejeição do primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido proporcionou a Gaston Gallimard o mais memorável episódio de sua biografia. O italiano Giangiacomo Feltrinelli foi uma exceção à regra, pois um dia aderiu à guerrilha urbana e explodiu-se num atentado terrorista frustrado.
Em março de 1998, o então repórter de cultura Paulo Roberto Pires pautou para O Globo um perfil de Jorge Zahar. Modesto, Zahar ressalvou: “Mas eu sou low profile”. De fato era; mas que exemplo de vida e permanente dedicação ao livro e à cultura nos legou. À frente da editora que levava seu nome, por ele criada em 1957, lançou praticamente todos os autores fundamentais das mais variadas áreas do conhecimento, das ciências sociais à ciência política, da economia à antropologia, das artes à mitologia.
Um catálogo sem igual. Que nunca descumpriu a promessa do slogan da editora: “A cultura a serviço do progresso social”. Se nossa sociedade, como um todo, não progrediu, nós, fiéis e glutões consumidores dos lançamentos da Zahar, progredimos à beça intelectualmente.
Luís Schwarcz, da Cia. das Letras, o segundo “filho adotivo” de Jorge (o primeiro foi Paulo Francis), considerava seu mentor não o melhor, mas o nosso único editor. “Nós que restamos somos meros comerciantes”, acrescentou, com sincera modéstia. Jorge era o seu ideal, o seu exemplo de dignidade profissional e comportamento humano. Apesar de “low profile”, Jorge merecia mais que um perfil; merecia um livro com a densidade e o carinho do biográfico A Marca do Z, que Paulo Roberto Pires, agora editor da revista Serrote, do Instituto Moreira Salles, acaba de lançar.
O Manual de Sociologia, de Jay Rumney e Joseph Maier, foi o cartão de visita da Zahar, seguido de Uma História da Música, de Otto Maria Carpeaux, cuja teimosia em cuidar, ele próprio, da revisão, sem o necessário know how, provocou a primeira turbulência na editora. E vieram as sumidades: Robert Heilbroner, J.K. Galbraight, C. Wright Mills, Paul Sweezy, Geoffrey Barraclough, Freud, Erich Fromm, Karl Mannheim, Arnold Toynbee, Sir James Fraser, a dupla Adorno-Horkheimer, Ronald Laing, Wilhelm Reich, Marcuse, Erwin Goffman, Philippe Ariès, Florestan Fernandes, Gilberto Velho, Roberto DaMatta.
Eliminei vários nomes, para não saturá-lo, prezado leitor, mas me afligiria omitir três dos títulos que mais contribuíram para a reputação da Zahar: A História da Riqueza do Homem (de Leo Huberman), A Necessidade da Arte (de Ernst Fischer) e A História da Arte (de E.H. Gombrich). Sem contar, claro, os soberbos dicionários de música (não menos que o da Grove), ópera e pensamento marxista.
Jorge só editava o melhor de cada especialidade. O clássico de Huberman - uma história do capitalismo desde a Idade Média até as vésperas da Segunda Guerra Mundial - vendeu 300 mil exemplares e nunca saiu de catálogo, há 19 anos mantido com o mesmo nível de exigência por Cristina Zahar, filha do editor.
Todos os anos, às vésperas do Natal, ele reunia um seleto grupo de amigos para um coquetel no escritório da editora, na rua México 31. Ênio Silveira (outro editor histórico e quase um irmão para Jorge), Millôr, Carlos Heitor Cony e Flávio Rangel encabeçavam o elenco. Em meio ao papo gostoso e inteligente, regado a Cutty Sark, o uísque preferido do anfitrião, este ligava para Paulo Francis, em Nova York, a fim de que todos os presentes trocassem meio dedo de prosa com o companheiro distante e lhe desejassem um Merry Christmas.
E assim foi até 1996. No Natal seguinte, o primeiro sem Francis do outro lado da linha, Jorge, ao despedir-se de mim, comentou, com lágrimas nos olhos: “Vai ser duro nos acostumarmos à ausência do nosso Francis”. No Natal de 1998, maldita ironia, o ausente seria o próprio Jorge.
Bem longe do Rio quando ele morreu, em 11 de junho de 1998, aos 78 anos, a princípio relutei escrever sobre o amigo para este caderno, onde então publicava dois artigos por semana. Receava nenhuma novidade ter a acrescentar aos obituários e testemunhos publicados pelos jornais do dia seguinte. Mas, ao flanar por Manhattan, cruzei com um imenso outdoor anunciando a estreia do filme A Marca do Zorro, com Antonio Banderas. E aos poucos me dei conta de que a cidade fora tomada por cartazes promovendo o filme, às vezes só com o Z, a marca do mascarado herói, riscado com a ponta de uma espada.
Era um sinal, intimando-me a escrever o que quer que fosse sobre Jorge e sua marca. Alguma coisa mais pessoal sobre ele devia ter sobrado para o meu adieu. Sobrara.
Da memória puxei uma de suas virtudes, intocada pelos jornais, talvez porque só os mais íntimos a conheciam. Jorge era um epicurista. Adorava compartilhar com os amigos descobertas gastronômicas, levadas tão a sério quanto os autores que selecionava para sua editora. Pires dá conta de sua paixão por cèpes (um cogumelo selvagem), mas, com tantos aspectos mais relevantes a abordar no livro, preferiu não perder tempo na cozinha.
No final dos anos 1980, ao ouvir que dali a uma semana eu visitaria o Museu Rodin, recomendou: “Vá de manhã e aproveite para almoçar ali mesmo na rue de Varenne, num restaurante excelente, cujo nome não o recomenda: Arpège”. Até então Arpège só me evocava perfume cafona, boate, Waldir Calmon, motel. Continua me evocando tudo isso, mais a lembrança de um opíparo déjeuner e a pequena preleção sobre os dotes culinários do chef Alain Passard ministrada por Jorge, um paizão gourmet que, segundo Millôr, “morreu sem errar”.
Sérgio Augusto
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