quarta-feira, novembro 1

Assim começa o livro...

Inverno e silêncio. Nenhuma carta do Brasil.

Paris, dezembro, 1977

Cidade gelada, nem sempre silenciosa: algazarra de turistas na travessia de uma ponte sobre o Sena. Somos do mesmo país, andamos para margens opostas. Essas gargalhadas e vozes são verdadeiras?

Hoje, em Neuilly-sur-Seine, meu aluno francês me ofereceu café e quis conversar um pouco sobre o Brasil. O bate-papo, de início besta, aos poucos rondou um assunto mais cabeludo, que logo ficou grave; para ir da gravidade

ao terror político bastaram duas xícaras de café e uns biscoitos. No fim, meu aluno, mudo, pagou os quarenta francos da aula e me deu dez de gorjeta. Foi o lucro desta tarde fria e cinzenta.

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Embolsei os francos e caminhei pelo Bois de Boulogne: árvores sem folhas, uma fina camada de gelo no solo, canto de pássaros invisíveis. A quietude foi assaltada por lembranças de lugares e pessoas em tempos distintos: Lázaro e

sua mãe no barraco de Ceilândia, a voz do Geólogo no campus da Universidade de Brasília, a aparição de uma mulher no quarto de um hotel em Goiânia, o embaixador Faisão recitando versos de um poeta norte-americano: “Apenas mais uma verdade, mais um/ elemento na imensa desordem de verdades…”.


Outro dia vi o rosto de Dinah, segui esse rosto e deparei com uma francesa, que se surpreendeu com o meu olhar; outros rostos brasileiros apareceram em museus, na entrada de um cinema em Denfert, nas feiras da cidade. Peguei o metrô até Châtelet, toquei violão no subterrâneo abafado e me lembrei das lições de música da Cantora. Não ouvi a língua portuguesa na plataforma nem nos corredores, peguei as moedas na capa do violão e andei pelo Marais

até o Royal Bar. Um conhaque. Abri meu caderno de anotações e esperei meus três amigos, brasileiros. Marcamos às sete da noite.


Pessoas encapotadas passam na calçada da Rue de Sévigné, vozes enchem o Royal Bar, lá fora um saltimbanco atravessou o ar gelado e pediu uma moeda a uma mulher.


Oito e quinze da noite. Damiano Acante, Julião e Anita furaram.

Nem tudo é suportável quando se está longe…

A memória ofusca a beleza desta cidade.

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