No dia 10 de Janeiro de 1970 tomei um trem para Cusco. Em Juliaca embarcou um mochileiro e sentou-se à minha frente e passamos a trocar nossas memórias de caminhantes. Era argentino, estava conhecendo o Vale Sagrado a caminho de Cusco, onde chegamos ao anoitecer. Ele não conhecia a cidade, estava com pouco dinheiro e me propus ajudá-lo. Eu planejava dormir numa peça aos fundos do Museu Histórico, como fazia antes de viajar para Lima, em Novembro. Trazia um bom dinheiro com a venda dos meus livretos em Arequipa e em Puno, mas não queria gastá-lo com hotel. Sabia que meu amigo Enrique Macias, o “Kiko”, já voltara de Arequipa e me aguardava. Como já disse anteriormente, Enrique Macias era o administrador do Museu Histórico de Cusco, cujo tio era o diretor e, como meses atrás eu e o equatoriano Simón Pachano dormíramos um tempo naquela peça do Museu, fui procurá-lo, como combinamos, mas também para pedir abrigo para o meu companheiro de viagem. Encontramos o “Kiko” na casa de seu tio e ele saiu connosco em direcção ao Museu. No caminho, nos disse que aquela peça onde eu já dormira estava ocupada com tralhas da instituição, mas que ele encontraria um lugar onde pudéssemos passar aquela noite. Abriu o museu e levou-nos por algumas salas em busca de um lugar para passarmos a noite. Finalmente, conduziu-nos para a parte nobre do museu, onde se encontravam as peças mais importantes da história de Cusco e nos disse:
--- Vocês dormirão esta noite na cama onde dormiu Simón Bolívar, quando passou por aqui.
Eu já sabia que aquela era a cama de Bolívar porque tudo ali me era familiar. Fiquei um pouco surpreendido com a cumplicidade que nascia entre nós três, afinal aquilo poderia se tornar um escândalo nacional e sul-americano: dois mochileiros suados, com a roupa do corpo, depois de uma longa viagem de trem, dormir na cama do grande caudilho e herói da independência hispano-americana. O argentino estava achando aquilo inacreditável e dizendo que dormir na cama de Bolívar seria a sua maior aventura desde que saira da Argentina. Eu abri minha mochila, tirei um pequeno cobertor e estendi com reverência sobre o colchão, para não macularmos com nossas transpirações, a história e o lugar onde dormiu um dia o Libertador da América. Que estranha honra nos aprontava o destino. Iríamos passar a noite dormindo naquela ampla sala da casa onde, também, quatrocentos anos atrás, vivera o grande Garcilazo de La Vega, chamado o Príncipe dos escritores do Novo Mundo. Não sei se pensei em tudo isso naqueles momentos. Estávamos cansados e quando deitamos naquele colchão duro só acordamos pela manhã com as palavras atropeladas do “Kiko” dizendo que levantássemos imediatamente, pois um funcionário do museu chegara antes dele a já abrira a porta para os turistas que caminhavam entre as salas. Foi a conta exata de enfiarmos os sapatos, pôr as mochilas nas costas, enquanto as vozes se aproximavam. Saímos disfarçando o olhar diante dos quadros, ante a surpresa dos turistas pois que sabiam eram os primeiros a entrar naquele salão. Na verdade senti-me constrangido pela imagem da instituição, mas o argentino segurava o riso.
Afastamo-nos discretamente, cabelos despenteados, cara de sono, ainda meios zonzos pelo súbito despertamento e sob os olhares de dois homens e três mulheres de meia idade que nos olhavam insistentemente, embora não ousassem imaginar, suponho, que havíamos dormido naquele local. Mas todo aquele momento mágico ficou preso ao seu próprio encanto e este facto somente foi contado, na época, em carta para meus familiares e está sendo publicamente relevado agora, nestas páginas. O argentino sumiu nos dias seguintes rumo a Pisac e a Machu Picchu, e eu me ajeitei, dormindo no chão, entre móveis e caixas que ocupavam a peça ao fundo do museu.
Se o gesto fraterno de Enrique Macias foi, para mim, apenas uma circunstancial aventura ou se foi um ultraje à memória de Bolívar, deixo o facto ao juízo dos meus leitores, mas não creio que nosso ato seja tão ultrajante à memória de Cusco como foram as concessões ao comércio elitizado, à instalação de boutiques de luxo e ao turismo de aparências que promoveu Alberto Fujimori em seu governo, maculando as tradições comerciais indígenas e a imagem cultural do Centro Histórico da cidade.
Manoel de Andrade, "Nos rastros da utopia"
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