quarta-feira, outubro 31
A casa das palavras
Na casa das palavras, sonhou Helena Villagra, chegavam os poetas.
As palavras, guardadas em velhos frascos de cristal, esperavam pelos poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser escolhidas: elas rogavam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem, as provassem. Os poetas abriam os frascos, provavam palavras com o dedo e então lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam palavras que conheciam e tinham perdido. Na casa das palavras havia uma mesa das cores.
Em grandes travessas as cores eram oferecidas e cada poeta se servia da cor que estava precisando: amarelo-limão ou amarelo-sol, azul do mar ou de fumaça, vermelho-lacre, vermelho-sangue, vermelho-vinho...
Eduardo Galeano, "O Livro dos Abraços"
Eduardo Galeano, "O Livro dos Abraços"
Cadernos
Meu caderno é um gênero literário, sem catalogação, sem enquadramento definido, apenas é. São muitos, tenho muitos cadernos, por toda parte eu os carrego. Pela casa inteira, dentro da bolsa, no carro, a extensão de uma mulher. Quando escrevo um livro primeiro o escrevo a mão num caderno, depois passo para o computador, mas o nascimento dos rabiscos, a troca de ideias, a montagem das frases, as ligações de palavras, tudo fica pulsando lá no caderno.
Quando leio anotações que escrevi em cadernos anos atrás é como se olhasse pela janela e visse passando do outro lado da rua a pessoa que fui um dia. Vejo vestígios de cimento e terra por entre as vírgulas e pontos, pois eu estava em construção, e ainda estou.
O caderno é um instrumento importante no processo da escrita. Ele é o alicerce na composição de notas para um livro, um texto, ou apenas ideias aleatórias. Ele é o berço perfeito para deitar teu pensamento que transita tranquilamente pelas gavetas mentais. Esses registros te nortearão por caminhos diversos ao escrever continuamente porque do que foi escrito é que se inicia a montagem do escritor, do bom texto.
Tenha vários cadernos para escrever. Pequenos, grandes, com linhas e sem, com aspiral, com capa colada. Os detalhes físicos fazem diferença na prática. Eu prefiro os sem linha e pequenos. Tenho caderno de estudo filosófico, de receitas, um onde escrevo crônicas, outra para poesia, caderno de senhas, para ideias que surgem repentinamente, de registro de cenas, de personagens. Eu vivo num universo de cadernos e os amo.
Elyandria Silva
Quando leio anotações que escrevi em cadernos anos atrás é como se olhasse pela janela e visse passando do outro lado da rua a pessoa que fui um dia. Vejo vestígios de cimento e terra por entre as vírgulas e pontos, pois eu estava em construção, e ainda estou.
O caderno é um instrumento importante no processo da escrita. Ele é o alicerce na composição de notas para um livro, um texto, ou apenas ideias aleatórias. Ele é o berço perfeito para deitar teu pensamento que transita tranquilamente pelas gavetas mentais. Esses registros te nortearão por caminhos diversos ao escrever continuamente porque do que foi escrito é que se inicia a montagem do escritor, do bom texto.
Tenha vários cadernos para escrever. Pequenos, grandes, com linhas e sem, com aspiral, com capa colada. Os detalhes físicos fazem diferença na prática. Eu prefiro os sem linha e pequenos. Tenho caderno de estudo filosófico, de receitas, um onde escrevo crônicas, outra para poesia, caderno de senhas, para ideias que surgem repentinamente, de registro de cenas, de personagens. Eu vivo num universo de cadernos e os amo.
Elyandria Silva
terça-feira, outubro 30
A torre de luz
Felícia sorria para todas as pessoas e todas as coisas, para os outros moços e moças da ceifa, para os tordos e taralhões que cantavam nas pernadas das azinheiras, para a brisa da manhã ou para o sol já forte do meio dia, para o esplendor de Junho, para a pobreza da marmita,onde havia mais migas do que conduto, e até para a severidade do manageiro, que a repreendia com alguma dureza quando ela se descuidava a bichanar com a Gisela, sua amiga de criação e eleição.
Quando eu passava por lá, a pé ou a cavalo, na insegurança dos meus dezasseis (ou dezassete) anos e ela nem tanto teria – parava a contemplá-la, o mais discretamente que conseguia, como algum tempo depois havia de olhar, em Florença, aquelas jovens que Botticelli eternizou nos jardins da adolescência.
Cintura fina, peitos altos escondidos nas blusas trapalhonas, ancas que se arredondavam na faina que as trazia dobradas para a terra, suando, caladas ou zumbindo baixo, entre risos.
Chamavam-lhes fressureiras, um nome feio, que não lhes quadrava, uma prima minha dizia que a Felícia era lésbida, corruptela de lésbica, que feria menos a sua graça natural, quase aérea.
Vi descansar a cabeça morena de Gisela na concha nervosa das suas mãos. Falavam uma com a outra como se se beijassem.
Uma vez em dia de festa, no salão dos Leões, observei-as a dançarem (e mexendo-se bem) com dois rapazes da vila, um deles muito cobiçado, que vendia chita a metro, na loja do Quintos. Mas não se perdiam de vista, os olhos de água e os olhos de febre.
Volvido um ano, quando refloriram as madressilvas e novamente as papoulas endoideceram de vermelho os trigais, fui dar com elas, por puro acaso, numa saleta reservada da Filarmónica dos Leões, onde ambas aprendiam o solfejo nos poucos minutos vagos, abraçadas uma à outra. Pareciam duas gazelas loucas trocando carinhos no paraíso. Num paraíso sem idade nem cor religiosa.
Estava eu alimentando a esperança de que por milagre me chamassem para o meio delas, mas limitaram-se a rir.
– Então, menino Albano, que confianças são essas? Está a tornar-se muito curioso.
Riam, riam, descaradas (ou inocentes) e eu a afastar-me em passo lento, salvando a dignidade.
Vieram tempos de chuva e tempos de seca, a argamassa dos dias foi crescendo como eu crescia e os rostos de pedra dos meus mestres abriram-se amavelmente para me dar passagem em todas as cadeiras.
Tornei ao “monte” com a estiagem de Agosto, bichos e pássaros dormindo a sesta como nós. Depois foram os punhos do vento quente a baterem nas nossas vidraças, a abanarem até as árvores de sombra à entrada da horta. Um dia de fogo.
Soube nessa mesma tarde do casamento da Gisela, semi-forçada pelos pais, com o caixeiro promissor.
Constou que Gisela havia prometido à Felícia, atordoada, que nada ia mudar entre elas.
A verdade é que o moço, entornando simpatia à sua volta, não tardou a conseguir uma sociedade em Lisboa, num bom armazém, e nada de voltar a Moura, nem pela feira de Setembro.
Quem tem cu tem medo, dizia a voz do povo.
Eu tentava brincar com a Felícia, para despertar a toutinegra que havia nela, sempre disposta ao canto e ao riso, mas agora, pelo contrário, ela emocionava-se com um nada que ricochetasse no seu desgosto e gaguejava, como uma criança, o que a tornava ainda mais tocante.
Aconteceu, nesses momentos raros de convívio, eu ver passar nos seus olhos azul turquesa (dantes dispostos ao pasmo, à malícia, à alegria) a suspeita de uma lágrima ou o calor da gratidão.
Olhos que ainda me faziam sonhar, embora soubesse que nada mais podia esperar desse encanto que às vezes ela esbanjava com toda a gente.
E um dia, subitamente, à hora do calor mais compacto, dos mosquitos arreliadores, chega a notícia brutal.
Gisela e o marido já haviam comprado casa, ele continuava em segura ascensão económica, ela ir-se-ia adaptando a essa outra existência.
Pois bem, ao darem um passeio dominical pela estrada do Guincho, o automóvel despistou-se, foram contra uma árvore, ele ficou todo desfigurado, mas Gisela continuava bonita, mesmo morta.
Houve outra versão, a das más línguas. Que tinham começado a dar-se mal, às vezes era o diabo à solta no apartamento da Estrela onde moravam, perto do estabelecimento, Gisela jurava que largava tudo e voltava para Moura. Mas o dinheiro não era dela e havia o decoro, as vozes do mundo, o respeito pelos pais e outras coisas a que ela anos antes não ligava e agora já contavam.
Teria sido ele, desesperado, a escolher a morte ou então ela que lhe mexera no volante, desviando o carro da estrada, no auge de uma discussão.
Puseram-se muitas hipóteses. Cada qual mais estranha e perturbante.
A família fechou-se em dor e silêncio.
Felícia não chorava, pelo menos em público.
Tornei a vê-la apenas uma vez depois do acidente. Fiquei incapaz de lhe dizer uma só palavra. Apertei-lhe muito as mãos. Ela entendeu e quase sorriu, sabendo como sabia que o seu sorriso me restituía a visão da sua adolescência esfuziante. O meu absoluto encantamento, nesse tempo das mondas e das ceifas, em que eu confundia a epifania do sol com o marejar dos seus desejos.
Houve quem a visse depois, nessa mesma tarde, já ao crepúsculo, entrar na água fresca do rio Ardila.
Avançou olhando não em frente mas para a lua compassiva, que já surgia, imprevista, no firmamento. E assim perdeu pé, escorregou, afundou-se devagar, deixou-se morrer.
Alguém disse que, precisamente nos pegos onde ela se afogou, em certas noites, nascia da água uma torre de luz. Outros confirmavam.
A maioria ia verificar o prodígio e não via nada.
Numa noite de breu, antes de se mostrarem as estrelas, fui até lá, menos por causa do fenómeno do que para ali rever, imaginar a Felícia, o seu delírio, a sua beleza patética, nesses últimos momentos.
E quando, sentado num penedo, a ouvir o pio inquietante do mocho e o marulho do rio, muito lento, já pensava em me ir embora, eis que vejo a torre sair das águas e subir, subir, com nervuras de luz, cartilagens subtis de um branco eléctrico, cristalizações, veios de todo o feitio, ossos fossilizados recuperando o movimento, espirais de luz, gotas de prata, tudo a tremer e a tilintar, um carrilhão de luz, ramos e rumores de luz azul desmaiado, flores de renda e vidro hialino, e sempre mais luz, ou fogo (celeste? satânico?), e a boca desfeita de Felícia, a sua boca fitando-me.
Era uma noite cálida de Agosto. Eu tinha deixado o cavalo roer umas ervinhas e agora perdia-o de vista, suspenso como estava entre a angústia e o fascínio.
Ouvi então a voz de Felícia a dizer-me:
– Menino Albano, não insista. Eu agradeço, mas deixe-me viver em paz a minha morte.
Já não havia sobre a superfície quase lisa e sombria do Ardila quaisquer vestígios da torre de luz.
A lua nova enchia de mistérios o montado fronteiro da Rola, que se desdobrava, muito para além do rio, em filas esburacadas de chaparros e azinheiras. E terra e mais terra mosqueada de sarças que eu conhecia e tufos de piorno, onde os coelhos faziam as luras.
Dentro de mim ressoava fundamente o riso de Felícia.
Quando eu passava por lá, a pé ou a cavalo, na insegurança dos meus dezasseis (ou dezassete) anos e ela nem tanto teria – parava a contemplá-la, o mais discretamente que conseguia, como algum tempo depois havia de olhar, em Florença, aquelas jovens que Botticelli eternizou nos jardins da adolescência.
Felícia correspondia, aliás, com muito salero, ao meu cumprimento. Mas a luz mais quente do seu olhar aveludado ia para a Gisela, que ceifava ao seu lado, ambas de saia apanhada entre os joelhos, para poderem curvar-se à vontade, e chapéus de homem sobre o lenço de ramagens que lhes escondia os cabelos bastos.
Cintura fina, peitos altos escondidos nas blusas trapalhonas, ancas que se arredondavam na faina que as trazia dobradas para a terra, suando, caladas ou zumbindo baixo, entre risos.
Chamavam-lhes fressureiras, um nome feio, que não lhes quadrava, uma prima minha dizia que a Felícia era lésbida, corruptela de lésbica, que feria menos a sua graça natural, quase aérea.
Vi descansar a cabeça morena de Gisela na concha nervosa das suas mãos. Falavam uma com a outra como se se beijassem.
Uma vez em dia de festa, no salão dos Leões, observei-as a dançarem (e mexendo-se bem) com dois rapazes da vila, um deles muito cobiçado, que vendia chita a metro, na loja do Quintos. Mas não se perdiam de vista, os olhos de água e os olhos de febre.
Volvido um ano, quando refloriram as madressilvas e novamente as papoulas endoideceram de vermelho os trigais, fui dar com elas, por puro acaso, numa saleta reservada da Filarmónica dos Leões, onde ambas aprendiam o solfejo nos poucos minutos vagos, abraçadas uma à outra. Pareciam duas gazelas loucas trocando carinhos no paraíso. Num paraíso sem idade nem cor religiosa.
Estava eu alimentando a esperança de que por milagre me chamassem para o meio delas, mas limitaram-se a rir.
– Então, menino Albano, que confianças são essas? Está a tornar-se muito curioso.
Riam, riam, descaradas (ou inocentes) e eu a afastar-me em passo lento, salvando a dignidade.
Vieram tempos de chuva e tempos de seca, a argamassa dos dias foi crescendo como eu crescia e os rostos de pedra dos meus mestres abriram-se amavelmente para me dar passagem em todas as cadeiras.
Tornei ao “monte” com a estiagem de Agosto, bichos e pássaros dormindo a sesta como nós. Depois foram os punhos do vento quente a baterem nas nossas vidraças, a abanarem até as árvores de sombra à entrada da horta. Um dia de fogo.
Soube nessa mesma tarde do casamento da Gisela, semi-forçada pelos pais, com o caixeiro promissor.
Constou que Gisela havia prometido à Felícia, atordoada, que nada ia mudar entre elas.
A verdade é que o moço, entornando simpatia à sua volta, não tardou a conseguir uma sociedade em Lisboa, num bom armazém, e nada de voltar a Moura, nem pela feira de Setembro.
Quem tem cu tem medo, dizia a voz do povo.
Eu tentava brincar com a Felícia, para despertar a toutinegra que havia nela, sempre disposta ao canto e ao riso, mas agora, pelo contrário, ela emocionava-se com um nada que ricochetasse no seu desgosto e gaguejava, como uma criança, o que a tornava ainda mais tocante.
Aconteceu, nesses momentos raros de convívio, eu ver passar nos seus olhos azul turquesa (dantes dispostos ao pasmo, à malícia, à alegria) a suspeita de uma lágrima ou o calor da gratidão.
Olhos que ainda me faziam sonhar, embora soubesse que nada mais podia esperar desse encanto que às vezes ela esbanjava com toda a gente.
E um dia, subitamente, à hora do calor mais compacto, dos mosquitos arreliadores, chega a notícia brutal.
Gisela e o marido já haviam comprado casa, ele continuava em segura ascensão económica, ela ir-se-ia adaptando a essa outra existência.
Pois bem, ao darem um passeio dominical pela estrada do Guincho, o automóvel despistou-se, foram contra uma árvore, ele ficou todo desfigurado, mas Gisela continuava bonita, mesmo morta.
Houve outra versão, a das más línguas. Que tinham começado a dar-se mal, às vezes era o diabo à solta no apartamento da Estrela onde moravam, perto do estabelecimento, Gisela jurava que largava tudo e voltava para Moura. Mas o dinheiro não era dela e havia o decoro, as vozes do mundo, o respeito pelos pais e outras coisas a que ela anos antes não ligava e agora já contavam.
Teria sido ele, desesperado, a escolher a morte ou então ela que lhe mexera no volante, desviando o carro da estrada, no auge de uma discussão.
Puseram-se muitas hipóteses. Cada qual mais estranha e perturbante.
A família fechou-se em dor e silêncio.
Felícia não chorava, pelo menos em público.
Tornei a vê-la apenas uma vez depois do acidente. Fiquei incapaz de lhe dizer uma só palavra. Apertei-lhe muito as mãos. Ela entendeu e quase sorriu, sabendo como sabia que o seu sorriso me restituía a visão da sua adolescência esfuziante. O meu absoluto encantamento, nesse tempo das mondas e das ceifas, em que eu confundia a epifania do sol com o marejar dos seus desejos.
Houve quem a visse depois, nessa mesma tarde, já ao crepúsculo, entrar na água fresca do rio Ardila.
Avançou olhando não em frente mas para a lua compassiva, que já surgia, imprevista, no firmamento. E assim perdeu pé, escorregou, afundou-se devagar, deixou-se morrer.
Alguém disse que, precisamente nos pegos onde ela se afogou, em certas noites, nascia da água uma torre de luz. Outros confirmavam.
A maioria ia verificar o prodígio e não via nada.
Numa noite de breu, antes de se mostrarem as estrelas, fui até lá, menos por causa do fenómeno do que para ali rever, imaginar a Felícia, o seu delírio, a sua beleza patética, nesses últimos momentos.
E quando, sentado num penedo, a ouvir o pio inquietante do mocho e o marulho do rio, muito lento, já pensava em me ir embora, eis que vejo a torre sair das águas e subir, subir, com nervuras de luz, cartilagens subtis de um branco eléctrico, cristalizações, veios de todo o feitio, ossos fossilizados recuperando o movimento, espirais de luz, gotas de prata, tudo a tremer e a tilintar, um carrilhão de luz, ramos e rumores de luz azul desmaiado, flores de renda e vidro hialino, e sempre mais luz, ou fogo (celeste? satânico?), e a boca desfeita de Felícia, a sua boca fitando-me.
Era uma noite cálida de Agosto. Eu tinha deixado o cavalo roer umas ervinhas e agora perdia-o de vista, suspenso como estava entre a angústia e o fascínio.
Ouvi então a voz de Felícia a dizer-me:
– Menino Albano, não insista. Eu agradeço, mas deixe-me viver em paz a minha morte.
Já não havia sobre a superfície quase lisa e sombria do Ardila quaisquer vestígios da torre de luz.
A lua nova enchia de mistérios o montado fronteiro da Rola, que se desdobrava, muito para além do rio, em filas esburacadas de chaparros e azinheiras. E terra e mais terra mosqueada de sarças que eu conhecia e tufos de piorno, onde os coelhos faziam as luras.
Dentro de mim ressoava fundamente o riso de Felícia.
Urbano Tavares Rodrigues, "Contos"
segunda-feira, outubro 29
Papel para sempre
Em 2008, um estudo que envolveu mais de mil editores de todo o mundo, «os maiores gurus da feira de Frankfurt», como refere o jornal El Pais, concluiu que, precisamente dez anos depois, o livro electrónico destronaria o livro em papel e este acabaria por morrer. Mas, afinal, a Feira do Livro de Frankfurt de 2018 fechou há uma semana e estava cheiinha de livros em papel. E não como relíquias, mas como o centro do próprio negócio. O vaticínio era falso e precipitado e, depois de um início bastante optimista do e-book, veio um inesperado retrocesso: o negócio do livro electrónico nunca ultrapassa 10% do mercado (na Alemanha, 8%, e é dos países onde se vendem mais livros desse tipo). Apesar de ter várias vantagens (podemos levar connosco 500 livros electrónicos para uma viagem – e isso explica porque grande parte dos e-booksde literatura são comprados sobretudo nos meses de férias), os leitores ainda acham que o livro digial pouco mais é do que uma reprodução do livro em papel, e a falta de novidade conduziu certamente à diminuição de compras, além de que, por exemplo, uma boa percentagem de compradores de e-booksem Inglaterra (entre os 18 e os 34 anos), quando gostam muito de um livro que leram no e-reader, vão comprá-lo a seguir em papel. Não sei o que vaticinaram há trinta anos os gurus da Feira de Frankfurt sobre os audiolivros. Esses continuam cá, também sem grande expressão, embora em certos países se vendam muito a pessoas que fazem longas viagens de carro entre a casa e o emprego e preferem ouvir um livro a ouvir rádio.
Os namorados
Dei com os olhos na notícia do jornal e achei engraçado. Eis que perturbavam os passantes, os “habitués” da fila, “as expansões”, do casalzinho, vai ver que de volta das aulas ou do trabalho. Não ri, nem chorei: como Machado de Assis, admirei-me simplesmente com as turbas.
Ontem, rolava eu pela tarde irrealmente linda de Petrópolis, e, não sei por que, pensava nesses namorados que nunca vi. Pensei em prestar-lhes o meu irrestrito apoio, intenção que ora concretizo, por estas mal traçadas.
Pois que seria de nós, deste complicado mundo, sem vós, namorados, mesmo que sejam estes que tanto reclamam, da fila Erasmo Braga-Urca. Amem-se, expandam-se nas suas expansões, que a ninguém pode fazer mal, mesmo ele sendo muito alto, ela muito baixinha, obedecendo à lei dos contrastes ou ao gênio da espécie. Estamos cansados, neurastênicos, aflitos neste mundo que não sabemos, mas desconfiamos, às vezes, aterrorizados, para onde irá. E um casal se ama, e, se amando, expande-se e se assim se expande às seis horas da tarde, na fila do ônibus, há de ser porque não tem muito lazer nem local para expandir-se em sítio mais cômodo, para eles e para os demais “habitués” da fila.
E fico a pensar em que expansões serão essas dele, muito alto, ela muito baixinha, como fez questão de frisar o reclamante, capaz de tanto perturbar a volta do trabalho desses escandalizados habitantes da Urca.
Não sei, mas estou convosco, ó namorados, ele muito alto etc. etc. O mais que fazeis é estar amando e não é coisa que geralmente faça mal ao próximo. Amando, no Rio de Janeiro, no Brasil, a inflação subindo quatro vírgulas não sei quanto cada mês, cápsulas espaciais a despencarem dos ceús, guerra no Vietnã, aflições e desconfortos vários. E vós ainda vos amais, um ao outro, numa fila humilde de ônibus, entre cinco e seis horas da tarde, vai ver que cansados da lida do dia.
Amem-se, expandam-se, doa a quem doer, que não há de doer muito. Digam o que disserem,é um dos belos ofícios que se pode exercer, neste triste mundo, este de amar e expandir-se. Mesmo sendo “ele muito alto, ela baixinha”.
Elsie Lessa, "Crônicas de Amor e Desamor"
sábado, outubro 27
Um clássico
Já eu era estudante universitária, e de letras, quando tive de responder a um apertado inquérito sobre as minhas leituras numa livraria-galeria das Avenidas Novas para conseguir trazer para casa Comunidade, de Luiz Pacheco. Ao que parece, era o último exemplar que existia na loja, e o livreiro decidira que só o venderia a quem o merecesse (ufa!). Mas essa atenção informada deteriorou-se muito com a industrialização da edição e a substituição das livrarias independentes por hipermercados e cadeias de lojas despersonalizadas.
Hoje em dia, não é assim tão raro termos de soletrar o nome de um autor (mesmo conhecido) para o funcionário da livraria o introduzir no computador e nos dizer se, afinal, tem ou não o livro que procuramos. E a ignorância grassa: um dia destes, mandaram-me procurar Octavio Paz na estante dos autores portugueses (lá soar soa) e há uns tempos, numa livraria do centro da capital, um senhor ao meu lado perguntou à funcionária se tinha alguma coisa de Charles Dickens e a reacção imediata dela foi: "Isso é o quê?"
Ainda apalermado com a pergunta, o cliente lá replicou: "Ó minha senhora, é um clássico." E, diante daquela explicação, a rapariga apontou então uma mesa próxima e disse-lhe: "Procure ali." Não resisti a ver o que havia na mesa: Sófocles, Ovídio, Lucrécio, Platão... Adeus, futuro.
sexta-feira, outubro 26
Reverência
Comecei minha vida como hei de acabá-la, sem dúvida: no meio dos livros. No gabinete do meu avô, havia-os por toda parte; era proibido espaná-los exceto uma vez por ano antes do reinício das aulas em outubro. Eu ainda não sabia ler e já reverenciava essas pedras erigidas: em pé ou inclinadas, apertadas como tijolos nas prateleiras da biblioteca ou nobremente espacejadas em aleias de menires, eu sentia que a prosperidade de nossa família dependia delasJean-Paul Sartre, "As palavras"
Encontros no sebo
Curiosidade não mata, mas movimenta o mundo. Não são curiosos apenas as crianças ou as mulheres. Um ser curioso, o homem. Talvez seja sua força motriz. Por futucar tudo, acabou criando das utilidades às parafernálias. Hoje o mundo é dele e só por enquanto gira em torno do sol; até que esse grande curioso não invente uma outra órbita para a Terra. Não seria, portanto, estranho a curiosidade também habitar o sebo. O livreiro guarda a mesma ansiedade da criança diante dos pacotes. Quando chegam novos livros, há sempre algo diferente. Por mais acostumado a desmanchar amarrados, persiste a esperança da novidade. Um livro nunca visto, talvez um autor desconhecido se revele. Nem faltam as decepções com o estrago em algumas obras. E ao menos aqui, a destruição é muita tanto pelo tempo, que maltrata os volumes, como as traças e o próprio homem, o maior admirador e ao mesmo tempo o grande desleixado com as obras.
Bicho curioso, ainda assim, vai o homem descobrindo novidades nos montes de livro. Quanta criatividade se mostra nas prateleiras para atender os múltiplos desejos dos leitores desde a edição rara a um volume simples que caiba no bolso, mas editado com esmero. Lojas de surpresas constantes, o sebo tem o atrativo de atender perfeitamente a esses leitores que carregam em si aquela criança a se divertir na leitura de um livro. Há leitor que não sai da loja sem visitar as prateleiras dos livros infantis à procura de seus “retalhos de infância”.
Bicho curioso, ainda assim, vai o homem descobrindo novidades nos montes de livro. Quanta criatividade se mostra nas prateleiras para atender os múltiplos desejos dos leitores desde a edição rara a um volume simples que caiba no bolso, mas editado com esmero. Lojas de surpresas constantes, o sebo tem o atrativo de atender perfeitamente a esses leitores que carregam em si aquela criança a se divertir na leitura de um livro. Há leitor que não sai da loja sem visitar as prateleiras dos livros infantis à procura de seus “retalhos de infância”.
Luiz Gadelha
quinta-feira, outubro 25
Papel para sempre
Biblioteca da Filadélfia (1875(, George Bacon Wood |
Para a feira do livro
A Ángel Crespo
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.
Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.
João Cabral de Melo Neto
quarta-feira, outubro 24
Passeio vespertino
À tarde me sentava nos cafés e percorria os sebos, num deles consegui uma primeira edição de "Elderly Italian poets", de Dante Gabriel Rossetti, por seis dólares, e o volume de Samuel Johnson sobre Shakespeare publicado pela Yale a um dólar e cinquenta, porque a capa estava danificada. Já desde antes de eu chegar á Argentina, o desemprego vinha aumentando desenfreadamente e milhares de pessoas estavam liquidando seus bens e abandonando o país. Algumas bibliotecas centenárias eram vendidas por peso, e às vezes eram compradas por sebistas que não tinham ideia do seu valorTomás Eloy Martinez, "O cantor de tango"
Agustina
Agustina vem cair de súbito, como uma pedra imensa e estranha, em pleno charco neorealista.
A partir dos anos trinta as pessoas que escreviam em português, quase todas ligadas ao Partido Comunista ou mais ou menos simpatizantes dele, inauguraram uma fase, muito influenciada por escritores franceses e italianos sobretudo, de romance que se queria social, iniciada talvez por Alves Redol (por quem tenho muito respeito) e Soeiro Pereira Gomes, a que se foram juntando uma imensa quantidade de nomes como por exemplo Fernando Namora, Manuel da Fonseca, Garibaldino de Andrade, Vergílio Ferreira, Mário Braga, Urbano Tavares Rodrigues, Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, José Saramago, Antunes da Silva, Augusto Abelaira, etc. porque a lista é infindável, que escreviam histórias de operários bons e patrões maus, como resumia por troça Fernando Assis Pacheco, que a mim, em geral, não me interessavam nada mas que interessavam uns aos outros e eu, adolescente de treze ou catorze anos lia numa aplicação decepcionada
(havia também José Cardoso Pires mas José Cardoso Pires, que viria a ser o meu melhor amigo, era outra loiça)
e, paralelamente a esses, o que existia era outra corrente, protofascista ou, no mínimo, não agressiva para a Ditadura, como por exemplo Joaquim Paço d'Arcos, Francisco Costa, Manuel Frederico Pressler e nomes assim que o tempo varreu também, que me interessavam ainda menos. Não era nada daquilo que eu queria, nem de uns nem de outros, mas não existia muito mais, o que deixava a criança que fui na aflição de encontrar uma voz diferente para a qual não tinha preparação nem experiência, na triste necessidade de construir, de raiz, outro mundo.
O tempo foi varrendo estes autores se bem que um ou outro livro continue ainda (o "Barranco de Cegos", meia dúzia de contos de Manuel da Fonseca, também bom amigo meu, pouco mais) e julgo que deles quase nada ficará. Mas nos anos 40 e 50 eram extremamente populares, apoiados numa crítica simpatizante do Partido Comunista, ou no mínimo não hostil, que os incensava com exuberância. E eis que de súbito surge no meio disto o primeiro livro de uma mulher chamada Agustina Bessa-Luís, que nada tinha a ver com nenhum destes grupos. Alimentada por Camilo (de quem não sou entusiasta) que por sua vez bebeu em Filinto Elísio (conheço mal mas o grande Bocage apreciava-o muito) aparece com uma prosa completamente diferente, completamente nova, rica, quase barroca, inteiramente inovadora, aguda, inteligente, irónica, riquíssima, surgida do nada (tirando o seu bocadinho de Camilo), de um talento desmedido. Claro que isto não se perdoa, os dois melhores críticos da época, Óscar Lopes hesitou e António José Saraiva leu com entusiasmo, e Agustina foi aumentando a sua obra, segundo regras que não existiam antes dela. As suas personagens não eram bonecos vestidos de ideias que em lugar de pensarem os sentimentos eram pensadas por eles, usava nexos afectivos, não racionais, as suas obras não obedeciam a uma ordenação lógico-discursiva, obedeciam a uma tumultuosa ordenação do caos, a inteligência não era apanágio do autor, era uma característica da escrita, no sentido em que as palavras solucionavam a tessitura de acordo com uma implacável lógica interna, não nos conduzia a parte nenhuma, mergulhava-nos em nós mesmos dando-nos a conhecer o nosso caos interior, descodificando-o e mostrando-nos a sua complexa simplicidade
(parece um paradoxo mas não é)
e construiu uma obra única de catalogação do mundo, uma aprendizagem das luzes e das trevas da qual saímos como quem desperta de um sonho, devorados pela prosa, reduzidos às cinzas de um fogo que nos devolve inteiros a nós mesmos. Aprende-se com ela como as trevas são claras e como tudo é excepcional. Os livros de Agustina são um alimento difícil porque a transgressão sistemática dos nossos conceitos racionais é metodicamente eficaz, substituindo-os por uma espécie de nudez primordial. E sai-se dos romances como de um pesadelo implacável, irónico, terno, violento, doce, obscuro e evidente. Ou seja estivemos a ler uma escritora do tamanho de George Eliot ou Jane Austen. E podemos dar graças a Deus de o seu idioma ser o nosso.
E agora meia dúzia de palavras apenas acerca da Mulher. Gostávamos muito um do outro, eu adorava o seu humor, a ironia da sua lucidez, a sua divertida sabedoria, os seus julgamentos implacáveis.
Uma ocasião disse-me:
- Dou-me tão bem com o meu marido que nos deviam chamar Casal Garcia. Mas tu és lindo, miúdo, e eu devia-me ter casado contigo ou com o Camilo.
Claro que estava a brincar: ela adorava ser metade do Casal Garcia, e a harmonia dessas duas metades comovia-me sempre, como me comoveu uma carta em que, comentando um livro meu, escreveu: "se eu usasse chapéu alto, e devia usar, tirava-o num rasgado gesto".
E como sabia o que valia não atacava ninguém. Uma grande Senhora. Uma grande Escritora. Agustina, sabe, não sei de qual das duas gosto mais. Se pudesse escolher ficava com ambas. E os seus livros estão vivos: que mais pode desejar? Deixe-me tornar a beijar, como sempre fazia ao encontrá-la, a sua mão.
A partir dos anos trinta as pessoas que escreviam em português, quase todas ligadas ao Partido Comunista ou mais ou menos simpatizantes dele, inauguraram uma fase, muito influenciada por escritores franceses e italianos sobretudo, de romance que se queria social, iniciada talvez por Alves Redol (por quem tenho muito respeito) e Soeiro Pereira Gomes, a que se foram juntando uma imensa quantidade de nomes como por exemplo Fernando Namora, Manuel da Fonseca, Garibaldino de Andrade, Vergílio Ferreira, Mário Braga, Urbano Tavares Rodrigues, Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, José Saramago, Antunes da Silva, Augusto Abelaira, etc. porque a lista é infindável, que escreviam histórias de operários bons e patrões maus, como resumia por troça Fernando Assis Pacheco, que a mim, em geral, não me interessavam nada mas que interessavam uns aos outros e eu, adolescente de treze ou catorze anos lia numa aplicação decepcionada
(havia também José Cardoso Pires mas José Cardoso Pires, que viria a ser o meu melhor amigo, era outra loiça)
e, paralelamente a esses, o que existia era outra corrente, protofascista ou, no mínimo, não agressiva para a Ditadura, como por exemplo Joaquim Paço d'Arcos, Francisco Costa, Manuel Frederico Pressler e nomes assim que o tempo varreu também, que me interessavam ainda menos. Não era nada daquilo que eu queria, nem de uns nem de outros, mas não existia muito mais, o que deixava a criança que fui na aflição de encontrar uma voz diferente para a qual não tinha preparação nem experiência, na triste necessidade de construir, de raiz, outro mundo.
O tempo foi varrendo estes autores se bem que um ou outro livro continue ainda (o "Barranco de Cegos", meia dúzia de contos de Manuel da Fonseca, também bom amigo meu, pouco mais) e julgo que deles quase nada ficará. Mas nos anos 40 e 50 eram extremamente populares, apoiados numa crítica simpatizante do Partido Comunista, ou no mínimo não hostil, que os incensava com exuberância. E eis que de súbito surge no meio disto o primeiro livro de uma mulher chamada Agustina Bessa-Luís, que nada tinha a ver com nenhum destes grupos. Alimentada por Camilo (de quem não sou entusiasta) que por sua vez bebeu em Filinto Elísio (conheço mal mas o grande Bocage apreciava-o muito) aparece com uma prosa completamente diferente, completamente nova, rica, quase barroca, inteiramente inovadora, aguda, inteligente, irónica, riquíssima, surgida do nada (tirando o seu bocadinho de Camilo), de um talento desmedido. Claro que isto não se perdoa, os dois melhores críticos da época, Óscar Lopes hesitou e António José Saraiva leu com entusiasmo, e Agustina foi aumentando a sua obra, segundo regras que não existiam antes dela. As suas personagens não eram bonecos vestidos de ideias que em lugar de pensarem os sentimentos eram pensadas por eles, usava nexos afectivos, não racionais, as suas obras não obedeciam a uma ordenação lógico-discursiva, obedeciam a uma tumultuosa ordenação do caos, a inteligência não era apanágio do autor, era uma característica da escrita, no sentido em que as palavras solucionavam a tessitura de acordo com uma implacável lógica interna, não nos conduzia a parte nenhuma, mergulhava-nos em nós mesmos dando-nos a conhecer o nosso caos interior, descodificando-o e mostrando-nos a sua complexa simplicidade
(parece um paradoxo mas não é)
e construiu uma obra única de catalogação do mundo, uma aprendizagem das luzes e das trevas da qual saímos como quem desperta de um sonho, devorados pela prosa, reduzidos às cinzas de um fogo que nos devolve inteiros a nós mesmos. Aprende-se com ela como as trevas são claras e como tudo é excepcional. Os livros de Agustina são um alimento difícil porque a transgressão sistemática dos nossos conceitos racionais é metodicamente eficaz, substituindo-os por uma espécie de nudez primordial. E sai-se dos romances como de um pesadelo implacável, irónico, terno, violento, doce, obscuro e evidente. Ou seja estivemos a ler uma escritora do tamanho de George Eliot ou Jane Austen. E podemos dar graças a Deus de o seu idioma ser o nosso.
E agora meia dúzia de palavras apenas acerca da Mulher. Gostávamos muito um do outro, eu adorava o seu humor, a ironia da sua lucidez, a sua divertida sabedoria, os seus julgamentos implacáveis.
Uma ocasião disse-me:
- Dou-me tão bem com o meu marido que nos deviam chamar Casal Garcia. Mas tu és lindo, miúdo, e eu devia-me ter casado contigo ou com o Camilo.
Claro que estava a brincar: ela adorava ser metade do Casal Garcia, e a harmonia dessas duas metades comovia-me sempre, como me comoveu uma carta em que, comentando um livro meu, escreveu: "se eu usasse chapéu alto, e devia usar, tirava-o num rasgado gesto".
E como sabia o que valia não atacava ninguém. Uma grande Senhora. Uma grande Escritora. Agustina, sabe, não sei de qual das duas gosto mais. Se pudesse escolher ficava com ambas. E os seus livros estão vivos: que mais pode desejar? Deixe-me tornar a beijar, como sempre fazia ao encontrá-la, a sua mão.
terça-feira, outubro 23
Bonito é o mundo
Malene Laugesen |
José Saramago, "Cadernos de Lanzarote III"
Não é país leitor
O Brasil não é um país leitor, que incentiva a prática da leitura de forma constante e prazerosa. Infelizmente em algumas escolas, a leitura é vista com algo direcionado a execução de tarefas – "leia para responder às perguntas", "leia para fazer resumo". Assim, constrói-se uma cultura de leitura obrigatória, maçante e não prazerosaRodrigo França
Adolescente deve ter em casa ao menos 80 livros
Rubin Alan |
Depois de cruzar todos os dados, os pesquisadores chegaram a um número: 80. Essa é a quantidade mínima de livros que você deve ter em casa, durante a adolescência, para que as suas habilidadesO interessante é que esse número, 80, era constante. Se a pessoa tivesse essa quantidade de livros em casa, suas habilidades cognitivas sempre melhoravam, independentemente do grau de educação que ela havia recebido. “Crescer em casas com bibliotecas aumenta as habilidades dos adultos nas áreas estudadas, indo além dos benefícios atrelados à educação parental, escolar e ocupações posteriores”, diz o estudo.
Outro ponto curioso é que, conforme a quantidade de livros aumentava, o desempenho dos voluntários também – mas existe um teto, que é 350 livros (mais do que isso não melhorou a habilidade cognitiva).
Outro ponto curioso é que, conforme a quantidade de livros aumentava, o desempenho dos voluntários também – mas existe um teto, que é 350 livros (mais do que isso não melhorou a habilidade cognitiva).
segunda-feira, outubro 22
Vivendo da literatura
Desempregado, indisposto com meu pai, sem poder, portanto, recorrer a ele, eu cortei um duro, nesse período. Possuía, já, uma pequena biblioteca, adquirida no tempo em que tinha dinheiro; passei a vendê-la, aos poucos, nos sebos. Lembro-me de ter dito uma tarde, de brincadeira, a Paschoal Carlos Magno:
- Acho que sou o único escritor, no Brasil, que vive da literatura...
Luís Martins, "Noturno da Lapa"
- Acho que sou o único escritor, no Brasil, que vive da literatura...
Luís Martins, "Noturno da Lapa"
Da biblioteca pessoal de Borges
Néstor Sarmiento |
Nos finais do século XIX, Groussac pode escrever com veracidade que ser famoso na América do Sul não era deixar de ser um desconhecido. Essa verdade, naqueles anos, era aplicável a Portugal. Famoso na sua pequena e ilustre pátria, José Maria Eça de Queirós (1845 -1900) morreu quase ignorado pelas outras terras da Europa. A tardia crítica internacional consagra-o agora como um dos prosadores e romancistas da sua época.
Eça de Queirós foi esta coisa um tanto melancólica: um aristocrata pobre. Estudou Direito na Universidade de Coimbra e, uma vez terminado o curso, desempenhou um cargo medíocre numa província medíocre . Em 1869, acompanhou o seu amigo, o conde de Resende, à inauguração do canal de Suez. Passou do Egito para a Palestina, e a evocação dessas andanças perdura em páginas que muitas gerações leem e releem. Três anos depois ingressou na carreira consular. Viveu em Havana, em Newcastle, em Bristol, na China e em Paris. O amor à literatura francesa nunca o abandonaria. Professou a estética do Parnaso e, nos seus muito diversos romances, a de Flaubert. Em O Primo Basílio (1878) notou-se a sombra tutelar de Madame Bovary, mas Emile Zola julgou que era superior ao seu indiscutível arquétipo e juntou à sua sentença estas palavras : " Fala-lhes um discípulo de Flaubert."
Cada oração que Eça de Queirós publicou fora limada e temperada, cada cena da vasta obra múltipla foi imaginada com probidade. O autor define-se como realista , mas esse realismo não exclui o quimérico, o sardônico, o amargo e o piedoso. Como o seu Portugal, que amava com carinho e com ironia, Eça de Queirós descobriu e revelou o Oriente. A história de O Mandarim ( 1880) é fantástica. Uma das personagens é um demônio; a outra , a partir de uma sórdida pensão de Lisboa, mata magicamente um mandarim que lança o seu papagaio de papel num terraço que fica no centro do Império Amarelo. A mente do leitor hospeda com alegria essa impossível fábula.
No ano final do século XIX, morreram em Paris dois homens de gênio, Eça de Queirós e Oscar Wilde . Que eu saiba, nunca se conheceram, mas ter-se-iam entendido admiravelmente."
Jorge Luis Borges, "Biblioteca Pessoal"
*Quando morreu , Jorge Luis Borges já tinha escrito os prólogos dos primeiros 64 títulos de uma série de cem que haveria de constituir uma coleção, a súmula das suas preferências literárias - a sua biblioteca pessoal. "Desejo que esta biblioteca seja tão variada quanto a curiosidade que a mesma induziu em mim"
domingo, outubro 21
Curta história
Naquele tempo esta Cecília tinha dezoito anos e um namorado. A desproporção era grande; mas explica-se pelo ardor com que ela amava aquele único namorado, Juvêncio de Tal. Note-se que ele não era bonito, nem afável, era seco, andava com as pernas muito juntas, e com a cara no chão, procurando alguma cousa. A linguagem dele era tal qual a pessoa, também seca, e também andando com os olhos no chão, uma linguagem que, para ser de cozinheiro, só lhe faltava sal. Não tinha idéias, não apanhava mesmo as dos outros; abria a boca, dizia isto ou aquilo, tornava a fechá-la, para abrir e repetir a operação.
Muitas amigas de Cecília admiravam-se da paixão que este Juvêncio lhe inspirava; todas contavam que era um passatempo, e que o arcanjo que devia vir buscá-la para levá-la ao paraíso, estava ainda pregando as asas; acabando de as pregar, descia, tomava-a nos braços e sumia-se pelo céu acima.
Darren Thompson |
Juvêncio, que já tinha ido a uma representação, e que a achou insuportável (era Hamlet) iria a esta outra por causa de estar ao pé de Cecília, a quem ele amava deveras; mas por desgraça apanhou uma constipação, e ficou em casa para tomar um suadouro, disse ele. E aqui se vê a singeleza deste homem, que podia dizer enfaticamente — um sudorífico; — mas disse como a mãe lhe ensinou, como ele ouvia à gente de casa. Não sendo cousa de cuidado, não entristeceu muito a moça; mas sempre lhe ficou algum pesar de o não ver ao pé de si. Era melhor ouvir Romeu e olhar para ele…
Cecília era romanesca, e consolou-se depressa. Olhava para o pano, ansiosa de o ver erguer-se. Uma prima, que ia com ela, chamava-lhe a atenção para as toilettes elegantes, ou para as pessoas que iam entrando; mas Cecília dava a tudo isso um olhar distraído. Toda ela estava impaciente de ver subir o pano.
— Quando sobe o pano? perguntava ela ao pai.
— Descansa, que não tarda.
Subiu afinal o pano, e começou a peça. Cecília não sabia inglês nem italiano. Lera uma tradução da peça cinco vezes, e, apesar disso, levou-a para o teatro. Assistiu às primeiras cenas ansiosa. Entrou Romeu, elegante e belo, e toda ela comoveu-se; viu depois entrar a divina Julieta, mas as cenas eram diferentes, os dous não se falavam logo; ouviu-os, porém, falar no baile de máscaras, adivinhou o que sabia, bebeu de longe as palavras eternamente belas, que iam cair dos lábios de ambos.
Foi o segundo ato que as trouxe; foi aquela cena imortal da janela que comoveu até às entranhas a pessoa de Cecília. Ela ouvia as de Julieta, como se ela própria as dissesse; ouvia as de Romeu, como se Romeu falasse a ela própria. Era Romeu que a amava. Ela era Cecília ou Julieta, ou qualquer outro nome, que aqui importava menos que na peça. “Que importa um nome?” perguntava Julieta no drama; e Cecília com os olhos em Romeu parecia perguntar-lhe a mesma cousa. “Que importa que eu não seja a tua Julieta? Sou a tua Cecília; seria a tua Amélia, a tua Mariana; tu é que serias sempre e serás o meu Romeu.” A comoção foi grande. No fim do ato, a mãe notou-lhe que ela estivera muito agitada durante algumas cenas.
— Mas os artistas são bons! explicava ela.
— Isso é verdade, acudiu o pai, são bons a valer. Eu, que não entendo nada, parece que estou entendendo tudo…
Toda a peça foi para Cecília um sonho. Ela viveu, amou, morreu com os namorados de Verona. E a figura de Romeu vinha com ela, viva e suspirando as mesmas palavras deliciosas. A prima, à saída, cuidava só da saída. Olhava para os moços. Cecília não olhava para ninguém, deixara os olhos no teatro, os olhos e o coração…
No carro, em casa, ao despir-se para dormir, era Romeu que estava com ela; era Romeu que deixou a eternidade para vir encher-lhe os sonhos.
Com efeito, ela sonhou as mais lindas cenas do mundo, uma paisagem, uma baía, uma missa, um pedaço daqui, outro dali, tudo com Romeu, nenhuma vez com Juvêncio.
Nenhuma vez pobre Juvêncio! Nenhuma vez. A manhã veio com as suas cores vivas; o prestígio da noite passara um pouco, mas a comoção ficara ainda, a comoção da palavra divina. Nem se lembrou de mandar saber de Juvêncio; a mãe é que mandou lá, como boa mãe, porque este Juvêncio tinha certo número de apólices, que… Mandou saber; o rapaz estava bom; lá iria logo.
E veio, veio à tarde, sem as palavras de Romeu, sem as idéias, ao menos de toda a gente, vulgar, casmurro, quase sem maneiras; veio, e Cecília, que almoçara e jantara com Romeu, lera a peça ainda uma vez durante o dia, para saborear a música da véspera. Cecília apertou/lhe a mão comovida, tão-somente porque o amava. Isto quer dizer que todo amado vale um Romeu. Casaram-se meses depois; têm agora dous filhos, parece que muito bonitos e inteligentes. Saem a ela.
Machado de Assis
Na biblioteca
Eu andava pela biblioteca procurando por livros. Tirava eles das estantes, um por um. Mas eles eram todos uma fraude. Eram muito maçantes. Páginas e páginas de palavras que não diziam nada. Ou, se diziam alguma coisa, levavam muito tempo para isso e, quando diziam, você já estava muito cansado para dar alguma importância. Eu tentei livro após livro. Naturalmente, em meio a tantos livros, deveria haver um.
Todo dia eu caminhava até a biblioteca pela Adams e pela La Brea e lá estava a minha bibliotecária, austera e infalível e silenciosa. Eu continuava a tirar os livros das prateleiras. O primeiro livro de verdade que eu achei era de um companheiro chamado Upton Sinclair. Suas frases eram simples e ele falava com raiva. Escrevia com raiva. Ele escreveu sobre os chiqueiros de Chicago. Vinha e dizia as coisas claramente. Então encontrei outro autor. Seu nome era Sinclair Lewis. E o livro se chamava Rua Principal. Ele descascava a camada de hipocrisia que costuma cobrir as pessoas. Só que carecia de paixão.
Charles Bukowski, "Misto-quente"
Todo dia eu caminhava até a biblioteca pela Adams e pela La Brea e lá estava a minha bibliotecária, austera e infalível e silenciosa. Eu continuava a tirar os livros das prateleiras. O primeiro livro de verdade que eu achei era de um companheiro chamado Upton Sinclair. Suas frases eram simples e ele falava com raiva. Escrevia com raiva. Ele escreveu sobre os chiqueiros de Chicago. Vinha e dizia as coisas claramente. Então encontrei outro autor. Seu nome era Sinclair Lewis. E o livro se chamava Rua Principal. Ele descascava a camada de hipocrisia que costuma cobrir as pessoas. Só que carecia de paixão.
Charles Bukowski, "Misto-quente"
sábado, outubro 20
Biblioteca
Alexandre Honore Na estante, os imortais da literatura acotovelam-se, lutando por espaço, enquanto as traças cumprem infatigavelmente as ordens do tempoRaul Drewnick
Fábrica de pensamentos
Recorremos aos nossos pensamentos no ato de escrever. Gosto de pensar na ideia de que é preciso ter uma fábrica de pensamentos funcionando bem, a todo vapor, para escrever qualquer texto, a qualquer hora, com rapidez, sem nenhuma dificuldade. Fazer um estoque com ideias bem formadas, estrutura de linguagem diversificada para buscar a matéria prima, a palavra, que será usada na fabricação do produto, que é o texto, acontece gradativamente. Aliado a tudo isso aprimora-se o talento da escrita com diversas técnicas, mas isso é assunto para outro texto.
O clichê da leitura sempre estará presente. Sim, é o começo de tudo e não canso de repetir que é o alicerce da fábrica, sem leitura você não escreve bem e não terá aptidão de interpretação de texto. Você começa a entender o funcionamento da engrenagem da tua fábrica, os processos, assume o controle de verbos e substantivos, desenrosca adjetivos, adentra o armário de pontos e vírgulas, arquiva reticências, martela palavras e depois de tudo conhece as frases que tem de ser desmontadas para funcionar bem. É a estética da escrita sendo descoberta e sua fábrica de pensamentos sendo erguida diante de um complexo quadro mental. Um quebra cabeça branco assumindo cores.
Na prática: durante a leitura anote as palavras novas e procure memorizar e compreender seu significado. Forme frases avulsas sobre determinados temas, escreva várias, muitas frases, sem se preocupar em formar um texto. Deixe-as descansando por alguns dias. Depois leia as mesmas frases novamente e escolha as melhores, as que ficaram bem escritas. Desmonte as frases que não gostou e reescreva-as. Seja crítico com o que você escreve.Elyandria Silva
Daniela Zekina |
Na prática: durante a leitura anote as palavras novas e procure memorizar e compreender seu significado. Forme frases avulsas sobre determinados temas, escreva várias, muitas frases, sem se preocupar em formar um texto. Deixe-as descansando por alguns dias. Depois leia as mesmas frases novamente e escolha as melhores, as que ficaram bem escritas. Desmonte as frases que não gostou e reescreva-as. Seja crítico com o que você escreve.Elyandria Silva
sexta-feira, outubro 19
Boca a boca é o melhor
Andrea Calisi Livros não dependem de publicidade, ao contrário das empresas de comunicaçãoLaurecne Orbach
Assim começa o livro...
“ele tinha medo de olhar para trás…”
Jênia Belkiévitch, seis anos. Hoje: operária
Junho de 1941…
Ficou na minha memória. Eu era bem pequena, mas guardei tudo na memória… A última coisa que me lembro da vida de paz é uma historinha, mamãe a lia de noite. Era a minha preferida, a do Peixinho Dourado. Eu também sempre pedia algo para o Peixinho Doura do: “Peixinho Dourado… Querido Peixinho Dourado…”. Minha irmãzinha também pedia. Mas pedia de outro jeito: “Por ordem do lúcio, por minha vontade…”.* Queríamos ir para a casa da vovó no verão, e que o papai fosse conosco. Ele era tão alegre.
Uma manhã acordei de medo. Uns sons desconhecidos…
O sol batia no meu rosto. Tão quente… Mesmo agora não consigo acreditar que naquela manhã meu pai foi para a guerra. Na época eu era bem pequena, mas acho que tinha consciência de que eu o estava vendo pela última vez. Nunca mais me encontraria com ele. Eu era muito… muito pequena…
Foi assim que ficou associado na minha memória — guerra é quando o meu pai não está…
E depois me lembro do céu preto e dos aviões pretos. Ao lado da rodovia estava minha mãe, deitada, com os braços abertos. Nós pedíamos que ela se levantasse, e ela não levantava. Não ficava de pé. Os soldados enrolaram a mamãe numa plasch palatka e a enterraram na areia, naquele lugar mesmo. Nós gritávamos e pedíamos: “Não enterrem a nossa mãe na vala. Ela vai acordar e vamos continuar o caminho”. Uns besouros grandes rastejavam pela areia… Eu não conseguia imaginar como mamãe ia viver embaixo da terra com eles. Como a gente ia localizá‑la depois, como a gente ia se encontrar? Quem iria escrever para o nosso pai? Um dos soldados me disse: “Menina, como você se chama?”. Mas eu tinha esquecido. “Menina, qual é o seu sobrenome? Como é o nome da sua mãe?” Eu não lembrava… Ficamos sentados junto ao montinho da mamãe até a noite, até que nos pegaram e nos puseram em uma telega. Uma telega cheia de crianças. Um velho conduzia, recolhia todas pela estrada. Chegamos a uma aldeia desconhecida e nos distribuíram pelas khatas de pessoas desconhecidas.
Passei muito tempo sem falar. Só olhava.
Depois, me lembro, era verão. Um verão luminoso. Uma mulher desconhecida me fazia cafuné. Eu comecei a chorar. E comecei a falar… A contar sobre minha mãe e sobre meu pai. Como papai correu de nós e nem olhou para trás… Como a mamãe estava deitada… Como os besouros rastejavam pela areia…
A mulher me fazia cafuné. Naquele momento eu entendi: ela parecia minha mãe…
Jênia Belkiévitch, seis anos. Hoje: operária
Junho de 1941…
Ficou na minha memória. Eu era bem pequena, mas guardei tudo na memória… A última coisa que me lembro da vida de paz é uma historinha, mamãe a lia de noite. Era a minha preferida, a do Peixinho Dourado. Eu também sempre pedia algo para o Peixinho Doura do: “Peixinho Dourado… Querido Peixinho Dourado…”. Minha irmãzinha também pedia. Mas pedia de outro jeito: “Por ordem do lúcio, por minha vontade…”.* Queríamos ir para a casa da vovó no verão, e que o papai fosse conosco. Ele era tão alegre.
Uma manhã acordei de medo. Uns sons desconhecidos…
Mamãe e papai achavam que estávamos dormindo, mas eu estava deitada ao lado da minha irmãzinha e fingia que estava dormindo. Vi que papai ficou muito tempo beijando a mamãe, beijava o rosto, as mãos, e eu me espantei: nunca antes ele a havia beijado daquele jeito. Eles saíram para o pátio de mãos dadas, dei um pulo e fui para a janela: minha mãe estava pendurada no pescoço do meu pai e não o deixava ir. Ele a arrancou e saiu correndo, ela o perseguiu, de novo não soltava e gritava algo. Então eu também comecei a gritar: “Papai! Papai!”. Minha irmãzinha e meu irmãozinho Vássia acordaram, ela viu que eu estava chorando e soltou um grito: “Papai!”. Todos nós saímos para o terraço da entrada: “Papai!!”. Meu pai nos viu, lembro como se fosse hoje, cobriu a cabeça com as mãos e foi andando, até sair correndo. Ele tinha medo de olhar para trás.
O sol batia no meu rosto. Tão quente… Mesmo agora não consigo acreditar que naquela manhã meu pai foi para a guerra. Na época eu era bem pequena, mas acho que tinha consciência de que eu o estava vendo pela última vez. Nunca mais me encontraria com ele. Eu era muito… muito pequena…
Foi assim que ficou associado na minha memória — guerra é quando o meu pai não está…
E depois me lembro do céu preto e dos aviões pretos. Ao lado da rodovia estava minha mãe, deitada, com os braços abertos. Nós pedíamos que ela se levantasse, e ela não levantava. Não ficava de pé. Os soldados enrolaram a mamãe numa plasch palatka e a enterraram na areia, naquele lugar mesmo. Nós gritávamos e pedíamos: “Não enterrem a nossa mãe na vala. Ela vai acordar e vamos continuar o caminho”. Uns besouros grandes rastejavam pela areia… Eu não conseguia imaginar como mamãe ia viver embaixo da terra com eles. Como a gente ia localizá‑la depois, como a gente ia se encontrar? Quem iria escrever para o nosso pai? Um dos soldados me disse: “Menina, como você se chama?”. Mas eu tinha esquecido. “Menina, qual é o seu sobrenome? Como é o nome da sua mãe?” Eu não lembrava… Ficamos sentados junto ao montinho da mamãe até a noite, até que nos pegaram e nos puseram em uma telega. Uma telega cheia de crianças. Um velho conduzia, recolhia todas pela estrada. Chegamos a uma aldeia desconhecida e nos distribuíram pelas khatas de pessoas desconhecidas.
Passei muito tempo sem falar. Só olhava.
Depois, me lembro, era verão. Um verão luminoso. Uma mulher desconhecida me fazia cafuné. Eu comecei a chorar. E comecei a falar… A contar sobre minha mãe e sobre meu pai. Como papai correu de nós e nem olhou para trás… Como a mamãe estava deitada… Como os besouros rastejavam pela areia…
A mulher me fazia cafuné. Naquele momento eu entendi: ela parecia minha mãe…
quinta-feira, outubro 18
Fábrica de pensamentos
Na prática: durante a leitura anote as palavras novas e procure memorizar e compreender seu significado. Forme frases avulsas sobre determinados temas, escreva várias, muitas frases, sem se preocupar em formar um texto. Deixe-as descansando por alguns dias. Depois leia as mesmas frases novamente e escolha as melhores, as que ficaram bem escritas. Desmonte as frases que não gostou e reescreva-as. Seja crítico com o que você escreve.
Elyandria Silva
Cultura fecha última loja no Rio e foca em e-commerce e lazer
Na semana passada, véspera do feriado de Nossa Senhora Aparecida, a rede encerrou as operações da loja do Cine Vitória, no centro do Rio. Com isso, a Cultura deixa de contar com livrarias físicas na cidade.
Em nota, a empresa afirma que a interrupção das atividades dessas unidades segue o plano estratégico traçado para os próximos anos: “manter unidades com boa performance, enriquecer cada vez mais a experiência do cliente em loja e crescer significativamente no e-commerce”.
Aos clientes da Livraria Cultura no Rio, a empresa diz que eles continuarão sendo atendidos pela internet e também pelo site da Estante Virtual - empresa do grupo que é líder no comércio digital de livros na América Latina.
A crise nesse setor evidencia o golpe sofrido pelo avanço do e-commerce, além da própria redução das vendas de livros, agravada com a turbulência econômica do país.
A Livraria Cultura, que comprou a Fnac há 15 meses, fechou todas as lojas físicas no Brasil da rede de origem francesa — a última, em Goiânia, suspendeu suas operações nesta segunda (15).
“Diante do cenário de incertezas no país, não podemos ser irresponsáveis a ponto de manter lojas deficitárias. Portanto, como já é de conhecimento público, tomamos a decisão de trabalhar com poucas, mas ótimas lojas físicas em diferentes cidades”, afirma a Cultura.
Segundo a empresa, as lojas físicas que continuarem existindo vão se diferenciar como pontos de lazer, entretenimento e consumo cultural.
No lugar da Fnac de Goiânia, será inaugurada a primeira Livraria Cultura na cidade. “Num mundo cada vez mais conectado, onde os consumidores podem pedir qualquer produto pelos sistemas de e-commerce e recebê-lo rapidamente, as lojas físicas tornam-se pontos de lazer e entretenimento. Queremos que os clientes venham nos visitar e fiquem muito tempo em nossas lojas, consumindo cultura e, melhor ainda, na companhia de opções gastronômicas que vão de um bom café, um drinque, até um almoço ou jantar dentro dos nossos espaços”, diz a companhia.
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