De fato, o fracassado botânico Henry Wickham foi um famoso impostor, que bem podia constar na História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges. Em 1876, Wickham contrabandeou 70 mil sementes da hevea brasiliensis para o Reino Unido; as sementes roubadas foram colocadas em estufas num Jardim Botânico de Londres e, meses depois, as mudas das seringueiras brasileiras foram plantadas na Malásia. Em menos de 40 anos, esse ato patriótico de um súdito da rainha Vitória aniquilou a economia da Amazônia.
Há britânicos e britânicos que passaram pela região amazônica. Na minha memória há, sobretudo, uma inglesa, que não foi uma cientista ilustre, muito menos uma contrabandista. Foi apenas minha professora, mas isso teve algum significado para um moleque de 13 anos.
Henri Lebasque |
Hoje, penso que a estreita convivência com os amazonenses mudara o sorriso e os trejeitos de Jane. Acho que mudara também outras coisas, mais íntimas. Mas em 1965, a reflexão sobre essa mudança moral nem passava pela minha cabeça.
A professora me convidava para entrar na sala, e os minutos que antecediam a aula eram a minha glória. Podia observá-la da cabeça aos pés e imaginá-la na piscina da mansão, sem o marido, que eu vi de longe uma única vez. Ele era o gerente de um banco britânico que existia desde a época do pirata H. Wickham, e até mesmo do injustamente esquecido A.R. Wallace. Quando Jane ficava de costas para mim, fingindo consultar um livro na estante, eu contava as pintas na pele rosada e sem rugas, quase um milagre no sol do Equador. Ou não era milagre, e sim o olhar turvo de um curumim encantado pela beleza ruiva. Enquanto o tempo passava, mrs. Hern, indiferente à pontualidade britânica, continuava a exibir as costas e os ombros nus. Ela era uma vítima feliz de um outro tempo, lerdo e arrastado, tão amazônico. Em algum momento, bem depois das 4, Jane se sentava à mesa, colocava a mão no meu braço e perguntava em inglês se eu havia lido um dos capítulos do romance. Referia-se ao Treasure"s island, que eu lia em casa e depois relia durante a aula. Esse romance me fascinava, mas eu não buscava exatamente o tesouro escondido por Flint, e sim um outro: a própria Jane de corpo e alma, mais corpo que alma, pois meu ser, naquelas tardes mornas, era mais carnívoro que platônico.
Mesmo assim, li com prazer o romance de Stevenson, esse arquiteto de tramas fantásticas, que encontrou seu paraíso em Samoa, bem longe de Londres e de sua Escócia natal. Agora, ao reler A Ilha do Tesouro, recordo meus encontros com uma mulher de 43 anos, que Manaus ia transformando lentamente numa cabocla inglesa.
Não sei em qual hemisfério ela vive; talvez já nem esteja neste mundo. De qualquer modo, Jane Constable Hern está viva na minha memória, esse vasto rio sem margens.
Milton Hatoum
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