No ar azul da madrugada
virias logo se eu chamasse?
Encostarias Tua face
à minha face enregelada?
Porque é que isto sempre me comoveu e ajudou tanto? Porque volto a ser logo o menino que fui e que o poema torna mais forte no meio da grande solidão que todos temos às vezes:
Se Te contasse o meu desgosto
de quando a angústia me vem ver
ter de expulsá-la pra viver
afagarias o meu rosto?
Susa Monteiro |
(chamava-se Alice, eu não sabia dizer Alice)
não via a Gija desde os cinco anos, portanto há cerca de vinte e de súbito ela estava ali, no meio das tais pessoas a olharem, gorda, de cabelos brancos e
(como se explica isto?)
soube logo que aquela pessoa era ela. Larguei a noiva, corri para aquela senhora e abracei-a de uma maneira como nunca abracei ninguém. Tinha o mesmo cheiro, a mesma forma de me tocar
(posso estar a ser injusto mas acho que nunca ninguém me tocou como ela)
os mesmos olhos transbordantes de ternura. E ali ficámos, agarrados, comigo de novo tão pequeno, tão feliz. Gija. Gija Gija Gija. Os convidados do casamento espantados, as pessoas que olhavam espantadas e eu, muito maior do que ela, de repente pequeno, ao seu colo. Ao seu colo. Tinha um senhor ao lado, que era o marido que eu não conhecia, mas eu queria lá saber do marido. Éramos um do outro, Gija, e voltei a ser o menino de alguém. Voltei, com tanta força, a ser o menino de alguém. A ternura dela era a mesma, o amor por mim era o mesmo, só que estava cheia de lágrimas. Lembro-me tão bem de dizer-lhe
– Gija nunca deixei de ser o teu menino
e depois voltei para o casamento, para Tomar onde tinha sido colocado antes de ir para Angola, para longe de ti, eu que nunca devia ter saído do teu colo, tu que me amaste sempre incondicionalmente, com tanta pureza, tanta simplicidade, tanta, meu Deus, alegria. E eu que continuo a amar-te de uma paixão tão linda, eu que sempre, ao acontecer-me um desses problemas gravíssimos da infância, uma queda, a perda de um brinquedo, dizia logo
– Quero a Gija
e tudo se compunha outra vez. Foi a última ocasião que te vi, embora continue sempre a ver-te
E se com esta voz de insone
dissesse que não creio em nada
no ar azul da madrugada
escreverias o Teu nome?
embora continue sempre a ver-te, Gija. Não vais acreditar na quantidade de vezes em que penso em ti. Onde quer que estejas, que estupidez dizer isto, estás no Céu de certeza, o teu menino pensa em ti. Há uns anos fui a Compostela receber um prémio, ou seja à tua terra na Galiza. E no discurso de agradecimento, com o Presidente do governo lá deles
(isto passava-se na Catedral e era solene) dediquei-te o prémio e disse o teu nome. Tenho a certeza que estavas lá, com o meu pijama de menino na mão
– Temos que vestir o pijama, Toino
e que te sentia tão orgulhosa de mim. Quando um dia morrer vais vestir-mo outra vez, porque não posso aparecer nu diante do Senhor, ordenas a Deus
– Tome bem conta do meu menino, ouviu?
e esperas que Ele te garanta
– Claro que tomo, Gija
antes de te afastares e que, de vez em quando, virás espiar-me no medo que eu tenha desarrumado o cobertor e espirre, ordenando a São Pedro que ponha o olho em mim, porque o meu menino, você é Santo e percebe, não veio aqui para se constipar.
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