O meu tio Jota escreveu-me. A minha mãe entregou-me a carta, li-a toda na cozinha, imóvel, olhando para o terraço dos prédios vizinhos; o meu filho chegou da escola, tirou-me a folha das mãos, passou-lhe os olhos por cima, e disse, "não sei por que que é que estás assim. É só uma carta e o homem parece bué fixe".
Darren Thompson |
Tinha visto o meu tio João uma vez na vida, porque fora a Moçambique de visita, era eu muito pequena. Levou-me prendas, passeou-me. Tinha a impressão de me recordar de um belo homem de barba escura todo vestido de branco. O 25 de Abril levou-o para o estrangeiro, onde existiu durante décadas, congeminando contra a democracia, recrutando mercenários para combater nas guerras civis das ex-colónias, traficando armas ou diamantes, e conseguindo financiamento para os movimentos de direita que iam aflorando. Um traste. Um daqueles indivíduos que nunca foi capaz de se livrar das suas piores convicções, defendendo que os homens nascem diferentes, e que é preciso discipliná-los para que não levantem a crista. Há sempre indivíduos como este. Alguém que finge, que procura safar-se.
Quando o conheci em Sevilha, trazia consigo uma amante loura parecida com a Odete Saint-Maurice, com mise cheia de laca, retornada de Angola, que passou o tempo a reclamar de tudo. Era esteticista e fazia depilação brasileira. O meu tio caminhava connosco empurrando-a levemente com o braço enlaçado na cintura e a mão toda aberta sobre a anca redonda. O meu pai perguntou-lhe quando regressava à terra. Podiam comprar um terreno em conjunto. O tio Jota respondeu que o regressaria no dia em que o meu pai voltasse a Moçambique. E o meu pai riu-se, como se isso não lhe passasse pela cabeça. Como se não sonhasse todas as noites em regressar à terra a que os ingratos dos pretos agora chamavam deles.
Nessa ida a Espanha comprámos rebuçados e sucedâneo de chocolate e regressámos comentando que o tio Jota já tinha idade para ter juízo, que era uma vida incerta, insegura, ninguém sabia dele, nem onde nem quando, etc, etc. E que a loira era um coirão. Eu não disse nada, porque eu nunca dizia nada. Aguardava uma brecha no muro. Um momento para escapar.
Quem morreu não devia ressuscitar para nos atormentar as noites. Se o tio Jota estava morto, devia ter continuado. Quer regressar a Portugal?! Está velho?! Então, mas não se está lá tão bem na Europa do norte?! O que me interessa que se sinta velho e pretenda, agora, regressar para junto da família, acarinhar a sobrinha, deixar-lhe o pouco que tem?! Não temos espaço para ele. Não queremos e não podemos. Não o conhecemos. Correr-me parte do seu sangue nas veias não significa coisa alguma. Também me corre nas veias sangue dum cristão novo cujo nome não consigo adivinhar, e dum missionário italiano que fornicou de pé, na sacristia, com o devido fruto, a menina dos Cristovãos, minha trisavó. Quem são, onde estão, que idade têm? Sabemos nós lá. tudo passa. O tempo engole as circunstâncias.
Isabela Figueiredo
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