Ervedosa ficava no fundo do vale, aninhada à volta da igreja. Isolada e distante do mundo, vivia do pastoreio e da minguada cultura das terras ribeirinhas de aluvião. Contudo, dessa economia circunscrita e pobre, fazia milagres. Comunitária desde tempos imemoriais, ninguém ali podia alargar os braços e estrangular o vizinho. Embora livre nas suas expressões íntimas e pessoais, no tocante à ordem e aos meios de produção cada qual tinha de dar contas à colectividade. E era ao mesmo tempo bonito e reconfortante ver partir de manhã o rebanho de todos para os baldios de todos.
Outras práticas igualmente severas e racionais regravam a conduta cívica dos habitantes. Eleitos, os dirigentes prestavam contas dos seus actos em conselhos da povoação. Ninguém podia escusar-se ao mando nem à obediência. À voz da sineta, juntavam-se velhos e novos. E o que fosse resolvido na assembleia magna, fazia lei. Às vezes havia discussões renhidas. Mas o bom senso vencia sempre. E o tosco e modesto edifício final era um modelo de equilíbrio e harmonia.
Assim o burgo atravessara os séculos, com suas normas e costumes, dobrado sobre uma vida que, apesar do burel, tinha horas de escarolada alegria. As festas pagãs das primeiras idades, embora assenhoreadas pelo hagiológio cristão, mantinham o salutar transbordamento da origem. E era ver como o vinho corria e os adufes ressoavam ao rebentar da folha e ao pingar da castanha. Conciliante e contagiado, até o padre Eusébio colaborava nos festins. Passada a onda de mosto, é que tratava de encaminhar como podia, em direcção à residência, a oferenda destinada aos mortos, para que nem tudo desagradasse a Deus.
Nesta paz lúdica e laboriosa caiu pois como um raio a notícia trazida pelo Guilhermino de que andavam homens desconhecidos a medir os penedos e os valeiros das redondezas. Logo os mais bem falantes e matreiros foram enviados a investigar, e, descobertos os propósitos, a protestar. Mas estava-se ainda longe da calamidade verdadeira. As palavras saíam da boca sem a força do irremediável. O tamanho da catástrofe só foi inteiramente compreendido quando as águas começaram a cobrir os lameiros e, pouco depois, as próprias casas da povoação. Aí romperam gritos dilacerados de cada alma, e ainda hoje, pelas quebradas, parece viver o eco dessa angústia de fim, que a guarda, de armas aperradas, tornou impotente.
Sem casa e sem terras, apenas dona do preço inútil e mesquinho das expropriações, toda a comunidade se sentia à deriva, perdida num mundo que não era o seu. A união fraternal acabara.
Agora cada qual teria de recomeçar outra vida, construir outro ninho, conquistar outro pão, criar outras amizades. Os filhos ficariam longe dos pais, os namorados com o seu amor frustrado.
E em vez de albufeira de força e de riqueza, o lago que lhes cobria o passado significava para eles um mar morto de aniquilamento.
Um, apenas, no meio de tanta lágrima e desespero, não compreendera ainda. Cego de nascença, o Belmiro não podia avaliar nem a qualidade, nem o tamanho da desgraça. E quando, arrastado pela mão dos outros, deixou a quelha onde morava e sentiu que os pés pisavam pedras desconhecidas, protestou:
― Para onde me levais?
Tentaram explicar-lhe mais uma vez que já nada restava de Ervedosa. Que o gado fora vendido, o cemitério arrasado, a vara da justiça quebrada. Que a própria igreja jazia sepultada no fundo das águas. Que teria agora de pedir esmola em lugares desconhecidos, a gente desconhecida.
Ouviu, ouviu, e continuou sem conseguir representar no seu espírito o absurdo que lhe pintavam.
― Não pode ser!
― É, homem! É!
― Não pode ser!
À onda de razão destruidora, opunha a instintiva escuridão conservadora.
E, como não foi capaz de ver pelos olhos alheios a própria desgraça, acabou de se perder sozinho.
A tactear as urzes, tentou voltar a Ervedosa. E logo depois de acariciar a casca do primeiro castanheiro que dantes marcava o começo da povoação, afogou-se.
Miguel Torga
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