domingo, dezembro 12

Adeus, Urano

Martha Wendelin 
Aqui já não vivo. Com prazer eviscerei esta casa, tomei seu coração entre as mãos e o acomodei no fundo de uma caixa. Quase danço sobre a cinza ainda quente. O que me dói, o que me dói, é haver passado. Aqui nasceu Yolanda, atravessei de lâmpada acesa mais de três mil madrugadas, escrevi nove livros, perdi a razão e alguns amigos, vi secar meu bonsai, ensurdeci de me refugiar em fones de ouvido contra britadeiras, furadeiras, marretadas. Também aqui vivemos o confinamento da pandemia, inventamos modos de viajar entre sala e quarto, pintamos planetas em bolas de isopor e os suspendemos por fios, enchemos de estrelas nosso espaço.


Ouvi quando arrebentaram a primeira telha da velha casa do vizinho, não faz muito tempo. Descobri que uma casa se põe abaixo assim, na mão, a começar pelo telhado. Vi a casa escalpelada se desfazendo em poucos dias, marretada a marretada, sumindo dentro da nuvem branca de pó, ficando só uma palmeira no meio de um grande terreno avermelhado. Pode subir, fumaça. Venha. Espalhe-se. Tome o que é seu, embranqueça tudo.

Farei um minuto de silêncio, como o que fez, em outros tempos, outro cronista, em derradeira homenagem a suas amendoeiras e gaivotas. Um minuto de silêncio para ouvir de novo os sabiás em meia hora de conversa trinada antes de abrir-se o dia. Adeus, morcegos de sobrevoos veludosos. Adeus, louco da avenida, com suas maldições desesperadas se metendo por entre janelas e portas. Adeus, louco, que nos proíbe o sono tranquilo: não estarei longe do seu grito. Adeus, corintiano do bairro, também andarilho. Continue, continue a cantar efusivamente que “Palmeiras não tem Mundial”, seja lá o que isso signifique.

A vocês todos que aqui me deram alguma alegria, adeus. O primeiro sol das manhãs enclausuradas alaranjando as lombadas dos livros. Para além dos prédios e dos guindastes, o contorno desanuviado da serra da Cantareira em certas tardes. O ipê escandaloso de flores me chamando pela janela da cozinha. Um minuto de silêncio para todos esses amigos. Mas não, nenhuma homenagem ao carro da pamonha (nada contra pamonhas, tudo contra alto-falantes nos carros). Ficarão vocês aqui, nesta rua com nome de planeta distante. Nesta rua com nome de planeta frio, de ventos azuis velocíssimos.

Não fotografo as estantes vazias de livros, como não fotografaria um morto. Sim, há quem o faça, que nunca está vago o posto do abuso ou do mau gosto. E porque antigas leituras armazenadas como lembranças só se perfazem na experiência, eu me lembro daquela historieta de Olga Tokarczuk que li uma vez para Yolanda, do homem apressado que perdeu sua alma e passou a esperar por ela numa casinha. Esperou até a barba lhe chegar à cintura. Então, uma noite, a alma lhe aparece na soleira da porta. Eles se reúnem, finalmente. O homem enterra seus relógios e malas de viagem no quintal e deles nascem abóboras e campânulas de flores.

Aqui, o que se passa é quase a mesma fábula, apenas invertida. É minha alma que partiu antes de mim e me espera na nova casita. Por isso a pressa. Uma pressa também nova, diferente daquela de todos os dias. Aparecerei na soleira da porta da casita e lá estará ela, finalmente. Só faltarão, por ora, as abóboras e as campânulas de flores, que um dia hão-de brotar no nosso quintal graças à boa rega. Tomo como adubo, além das malas de viagem e relógios, as palavras daquele cronista que homenageou com um minuto de silêncio suas amendoeiras e gaivotas: “não quero mais procurar, quero conhecer o que já encontrei”.
Mariana Ianelli

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