O Homem Que Passeia, de Jiro Taniguchi |
Eu costumava levar a recomendação ao pé da letra. Imprimia a tradução, pegava canetas vermelhas, uma prancheta, e fugia de casa para revisar. O original ficava no computador ou na minha mesa, bem longe.
Traduzir é uma atividade de horas e horas (e horas e horas) de bunda sentada na frente do computador, mas essa terceira fase pode acontecer ao ar livre. Dando voltas bem lentas nas quadras perto de casa, repondo vitamina D, cabeça baixa lendo a tradução. E sem medo de parecer mais um que fala sozinho na rua, pois Britto também recomenda que você revise lendo em voz alta. Não muito alta, no meu caso. Fui confundido com aquelas pessoas que leem medidor de água e de luz.
Eu costumava traduzir assim. Faz quase dois anos que não faço minhas terceiras fases caminhando pela rua, devido a uma pandemia global. Fora a chance de trazer o vírus para casa, as ruas passaram mais vazias que de costume. Não sei com o que iam confundir aquela figura de máscara se arrastando, sozinho, olhando para uma prancheta, no meio do caos.
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Me perguntaram algumas vezes: “Mas pro seu trabalho não mudou nada, né?” Afinal, tradutores trabalham em casa, em quarentena eterna desde muito antes dos vírus. É verdade que faz uns seis ou sete anos que eu não saio de casa para trabalhar – fora naqueles passeios de terceira fase – e pude dar dicas a quem teve que fazer romófice. A que eu não sigo, por exemplo: cuidado com a geladeira.
Mas mudou. Lembro daquele dia de março de 2020 em que eu e a Marcela – que também pode dar dicas de romófice (a dela é: fones de ouvido intra-auriculares) – saímos para almoçar num restaurante e voltamos conversando se ainda era seguro mandar a Azeitona, 8 anos, para a escola. Na porta do apartamento, li a notícia da primeira morte de criança devido à Covid. Azeitona não foi para a escola e passou os 20 meses seguintes no que chamava, com tédio e uma palavra só, de aulonlaine. Também foi nosso último restaurante por muito tempo.
E temos o Gergelim, que estava com 15 meses na época e ainda não conhecia escola. Mal conhecia outras pessoas. Ainda tem muitas para conhecer.
Então, sim, mudou. Trabalhar em casa com os filhos constantemente em casa, sem escola, sem chance de uma babá, sem poder recorrer a avô ou avó ou tias ou tio, eu e Marcela nos revezando nas crianças, nas horas de trabalho, na vez de gritar dentro do travesseiro – não foi nada normal. E foda-se o “novo normal”. Entre medo de vírus e medo de enlouquecer, chamamos a babá de volta em dois meses.
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Não sei se você vai lembrar, mas naqueles primeiros tempos de pandemia os seus amigos apocalípticos garantiam que em questão de meses íamos brigar pela última latinha de atum no supermercado. Lembra dos carrinhos cheios de papel higiênico? Eu e a Marcela temos uma amiga que sabe plantar tomate e morango. Nosso plano era sequestrá-la e nos refugiar no Uruguai. Ela podia alimentar as crianças.
Para o pantofóbico mercado editorial, a última coisa que as pessoas iam precisar era de livros. Eu e outros tradutores fomos convidados por nossas editoras a parar com os projetos que estavam em mãos e aguardar instruções. Nem em 2018 tinha sido assim. Falei para amigos que, depois que tudo passasse – se passasse –, eu teria que achar outra ocupação.
Errei feio, errei rude. O mercado também. E a culpa foi sua. Muito obrigado! Os brasileiros quarentenados que zeraram a Netflix no primeiro mês começaram a comprar livros no segundo. O mercado editorial voltou melhor do que antes. Ouvi de uma colega tradutora: “Não para de chegar projetos e aceito tudo porque é a nossa compensação pela seca de 2018 e 2019.”
Da minha parte, acho que nunca fui tão produtivo. Como tradutor, trabalhei em alguns calhamaços de ficção científica, sendo que umas 500 páginas tinham a ver com os terrores do momento. Sou grato por ter passado boa parte desse tempo (e ainda estar) imerso na melancolia engraçada do Charlie Brown. Fora as traduções, eu publiquei um livro (que estava pronto antes da pandemia), comecei um podcast com dois amigos, voltei a dar aulas (aulonlaine), lancei outra coluna e segui nesta. A maior parte desta produção veio de convites, não da iniciativa obnubilada pela pandemia. Obrigado por todos esses convites. Obrigado, de novo, a você que lê e compra livros.
Então: sim. Meu trabalho mudou bastante. Meu descuido com a geladeira também, infelizmente.
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Com dois meses de pandemia, resolvemos nos mudar. A antiga casa dos meus pais estava vazia, é maior que nosso apartamento e tem um pátio grande para as crianças correrem o que não podiam correr na rua. Combinamos passar três meses acampados por lá, no pior das quarentenas.
Foram dezoito meses. Correndo no pátio, Azeitona completou 10 anos e Gergelim quase chegou aos 3. Não fui só eu que produzi tanto ali, “acampado”, mas a Marcela também recebeu propostas de emprego (romófice) e trabalhos legais. Não tivemos que brigar por latinha de atum. A Marcela nem gosta de atum. Nosso medo com o vírus tinha que dividir o medo com todas as notícias não-vírus, sobre o desgoverno e a possibilidade de ter que acampar não em outra casa, mas em outro país.
Os dezoito meses acabaram na semana passada. As aulonlaine da Azeitona chegaram ao fim, Gergelim também passa as tardes na escola. Eu e Marcela voltamos para nosso romófice de sempre, no apartamento. O meu computador e o dela estragaram, acho que de emoção. Espero que se recuperem logo.
Mas estamos de volta e, mesmo que a pandemia não tenha acabado, fechamos um ciclo. Espero que algumas coisas do ciclo anterior desapareçam, mas espero que outras que começaram ali continuem. Meu trabalho mudou e algumas coisas mudaram para melhor.
Minha mesa, a mesa que eu passei dezoito meses sem ver, tem uma caneca cheia de canetas vermelhas. Estou terminando a segunda fase da tradução de um livro de ciência política – sobre a pós-pandemia, veja só – e estou cogitando imprimir e sair a revisar pelas ruas. De máscara, mas vendo outros seres humanos pela volta. Com que será que vão me confundir?
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