Não quero escutar a voz interior, sussurrante, que me fala em perfídia. Não creio que a senhora Charlotte Brontë se desse a tanto trabalho apenas por venenos dessa ordem. Até porque nunca tivemos o gosto bom ou mau de nos cruzarmos. Não acredito que alguma das minhas acções se possa ter estendido ao ponto de perturbar qualquer gesto ou de causar-lhe qualquer espécie de indisposição. Apesar de ser sempre difícil traçar uma fronteira ao alcance das práticas.
Mesmo recusando a perfídia como propósito, sei bem que esses amargos podem surgir da simples existência. Se os espelhos da senhora Charlotte Brontë estiverem partidos, talvez lhe baste saber de um adjectivo valoroso que me tenha sido dirigido; se for propensa a unhas encravadas, talvez lhe baste saber da saúde das minhas; se for forte de ossos e gostar de pão untado com banha, talvez lhe baste a notícia da minha elegância para que eu própria lhe desgoste. Esse é o mal da inveja, um vapor poderoso que inebria e que, muitas vezes, se movimenta através das palavras. Em Thornfield Hall, no jardim, na superfície do lago, foram bastas as ocasiões em que me detive a observar uma espécie curiosa de insectos que pousa as suas patinhas finas, linhas perfeitas, sobre a água. É assim que se movimentam naquela superfície cristalina; a mesma superfície que nós, com menos sensibilidade, só conseguimos atravessar, mergulhar. É também assim que a inveja, como esses insectos, se movimenta pelas palavras, como a água do lago: água cristalina no jardim de Thornfield.
Não sei. Já matei a cabeça demasiadamente com este assunto. Nunca julguei que viesse a referir tantas vezes a senhora Charlotte Brontë. Houve noites em que, querendo dormir, precisando de descansar, apenas ouvia este nome repetido dentro de mim e, ao mesmo tempo, uma pergunta também repetida, a fazer eco: porquê? Edward disse-me até se cansar: esquece. Disse: esquece, Jane, a realidade é muito mais forte do que essas páginas toscas que tentam nomear-te, mas que não chegam a tocar a tua sombra ou o teu reflexo. Foi exatamente isto que Edward disse. Disse também: tu e eu sabemos. Disse: aquilo que os outros pensam vem muito depois.
Meu doce Edward! Meus braços que abraçam! Peito que recebe o meu rosto a soluçar, que encontra sempre o consolo certo para me aliviar! Recebo a ternura das suas palavras. São como beijos disfarçados de verbos. Sorrio mas passa o tempo, meses e, em algum instante, volto a interrogar-me: porquê? De facto, Edward e eu sabemos. O grosso das descrições da senhora Charlotte Brontë são rigorosas no que concerne a uma quantidade generosa de assuntos. No entanto, são incorrectas com o mesmo rigor em relação a um número imenso de outros assuntos. Tentando, cheguei a encetar o trabalho de identificação dessas imprecisões página a página. Cheguei quase a meados da obra. Cheguei quase louca, enlouquecida a meados da obra. A partir de certa altura, duvidava até de mim própria. A minha memória estava tão embaraçada nas páginas, parágrafos e falas desse romance que tive de parar. Depois desse trabalho incompleto, suportei três dias de insónia total e, a seguir, três dias de sono ininterrupto.
Como se vê, apoquentei-me com isto.
É impraticável retirar de todas as bibliotecas e lojas de livros o romance que a senhora Charlotte Brontë decidiu intitular com o meu nome. Está em lados que desconheço, que desconhecemos todos, é um passo que não pode voltar atrás. É também impraticável definir uma relação completa dos dados que estão de acordo com a realidade e dos outros dados, longe, longe dessa mesma realidade. Lamento essa impossibilidade, mas aceito-a. Assim, resta-me apelar a que não pactuem com essa narrativa que parcialmente é irreal. Não sendo possível destrinçar a fantasia do vivido, não vejo outra alternativa que não seja apelar à total recusa da obra. Espero que, desse modo, os meus dias possam encontrar alguma paz que, com esta idade, sinto ser-me merecida. Não tenho meios de estender esta mensagem até a todos os lugares onde o romance se encontra, mas espero que, um a um, esta mesma mensagem se possa ir estender na boa vontade de quem lê. Como aqueles insectos do lago de Thornfield. Esta mensagem, como os insectos, e a boa vontade de quem lê, como a água do lago do jardim de Thornfield.
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