Preso, o seu olhar entrou em cada uma daquelas palavras, mestre de obras, avaliou-as por dentro como se fossem casas; pode viver-se aqui?, perguntou no silêncio do seu interior, interior dele e das casas, recebendo apenas a resposta do eco, otimista evidência de um lugar criado, espaço viável, habitat. Depois, na via que aquela frase alinhava, passeou diante das palavras, rua de fachadas dignas e sólidas, mediu o espaço entre cada uma, comparou as nuances da cor que apresentavam, reflexos de um sol que brilhava desde o centro do romance.
Ainda com a atenção nessa paisagem, afastou as mãos do teclado do computador, seriam duas aves possíveis, mas eram realmente as mãos de um homem de setenta e quatro anos, mãos de pele humana, provisoriamente sem peso, esquecidas da gravidade. Pousou-as sobre o tampo de madeira, uma em cada banda do teclado, e os dedos encontraram um descanso individual, uns mais esticados, outros mais encaracolados nas falanges. Debaixo da mesa, na sombra, deslizou os pés para fora das pantufas, deixou-os a meio, ainda no conforto têxtil e já na liberdade. Mas tudo isto era alheio ao arbítrio do escritor, o corpo humano avança numa existência independente quando abandonado, é por felicidade que o coração não espera ordem para bater, que os pulmões se organizam autónomos na sua azáfama de respirar, até o mais anónimo cabelo sabe embranquecer sozinho. Atrás, os livros das estantes pareciam inclinar-se-lhe sobre os ombros, ávidos de não perder o que fosse, investigadores, também eles já tinham sido assim, antes da impressora e das leituras críticas, antes do mundo, protegidos pelo zelo do seu criador. No outro lado do escritório, fugindo de raízes afeiçoadas à terra doméstica, imitação envasada dos campos, plantas mudas estendiam-se na direção da claridade, era esse esforço que as fazia crescer. Talvez se possa acreditar que também essas folhas carnudas faziam crescer a claridade, tal era a abundância com que julho inteiro rebentava naquela janela, o início de julho através daquelas vidraças, o dia 2 de julho de 1997 jorrava inteiro por aquela janela. Na parede restante, a porta fechada, ruídos cautelosos que alguém poderia definir por remanso.
Com um movimento de pescoço, quase indistinto, aconteceu ou não, Saramago levantou o olhar. Não chamaria Pilar imediatamente, tinha esse lance guardado, antecipou-o durante meses e, agora, queria tomar-lhe o gosto. Entre pensamentos, era capaz de ouvir a sua própria voz a chamá-la, tinha uma maneira especial para articular o nome de Pilar naqueles momentos, conseguia já ver os detalhes do seu rosto assim que lhe desse a notícia. Animara essa imagem entre capítulos e jornadas de escrita, a ponto de não terem sido poucas as vezes em que essa lhe pareceu a primeira razão, a mais verdadeira, tinha-se dado ao trabalho daquele romance para assistir ao rosto de Pilar no momento em que o tivesse terminado. Sem que precisasse de alterar a expressão, esta ideia juvenil fazia-o sorrir. Ao mesmo tempo, as personagens ainda mexiam no seu íntimo, revolteavam assustadas, incertas do futuro, faltava-lhes palavras, começavam a desfazer-se; também por isso, o escritor precisava de mais algum tempo a sós com elas, precisava de acudir a essa afl ição; e agora?, e agora?, indagavam as personagens sem parança. Era necessário tempo para explicar-lhes que agora a sua vida começaria de facto.
Existia aquele escritório e dentro da cabeça de Saramago existia outro escritório, o mesmo acontecia com aquele livro acabado de escrever e com toda a ilha de Lanzarote, o oceano Atlântico. Não se pode saber o que é maior, há muitos tipos de tamanho, assim como o livro estava dentro da ilha, também a ilha estava dentro do
Tocaram à campainha. Pensou logo no vale de correio, poderia ser? Precisava muito desse dinheiro, mas não lhe era conveniente quebrar a agilidade rara, tão rara, da escrita. José fechou os olhos, girou o indicador sobre o teclado até perder discernimento da localização das letras. Confiaria na ordem alfabética, mas desnivelou as probabilidades, abriria a porta se calhasse menos do que h, continuaria sentado se saísse uma letra mais alta no alfabeto. Pousou o dedo, levantou as pálpebras, curiosidade de rato, calhou b. Libertou-se do sofá que o engolia para o interior de uma cova na napa, molas partidas, e deu seis passos médios, atravessando aquela divisão. A meio desse caminho, bateram à porta, ossos na madeira. Não estranhou, José morava no rés do chão, a entrada do prédio ficava a pouca distância da sua porta.
Convencido de que ia encontrar o carteiro, arrastou o puxador num movimento único, levava semblante escolhido e reprimenda preparada mas, antes de abrir a boca, um dos homens lançou-lhe a mão ao pescoço e empurrou-o para dentro, levantou-o no ar, os bicos dos pés a tocarem o chão, bailarina despreocupada com a graciosidade; o outro seguiu-os e fechou a porta. Retido nessa mão apertada, braço esticado, José não soube o que dizer ou o que fazer, ainda que não conseguisse exprimir um pio com a garganta cingida e que, pelo mesmo motivo, não tivesse a autoridade de qualquer gesto. Sabes quem nos mandou? Só o murro que recebeu no baço depois desta pergunta teria chegado para José. Não caiu de joelhos porque estava suspenso pelo pescoço. Talvez o homem fosse canhoto se esmurrava com tanta pujança à esquerda mas, nesse caso, impressionava a competência com que estrafegava à direita. Em qualquer das opções, era certo que tinha mais raiva num braço, qualquer um, do que José em todo o esqueleto.
Engelhando a cara para puxar a lembrança, José apenas conseguia distinguir retalhos, momentos incompletos a passarem demasiado depressa, sem início, começados a meio, sem fim, terminados no ar, de repente. Talvez a angústia cortasse instantes ao calhas. Mesmo em recordação, depois de ter passado a aridez do susto, essas imagens foram sempre acompanhadas pelo peito oprimido.
Bartolomeu responsabilizou a bebida. Whisky?, não; vinho tinto?, não; conhaque?, não, já disse que não. José arrependeu- -se de ter-lhe contado mas, a partir de certa altura, ele próprio deixou de saber em que acreditar, teve dúvidas. Ainda assim, quando atinava, quando acertava o olhar por um dedo levantado a dois palmos da cara, acreditava que se tinha tratado de um esgotamento, uma fadiga de cabeça, não aguentou a pressão que as palavras faziam para atravessar-lhe os poros. Nessa época, ainda confi ava que, se insistisse muito, podia avançar com o romance. Em casa, durante dias seguidos, acumulava suor, restos de comida podre e, ao longo de horas, mantinha o caderno aberto à sua frente, palavras riscadas, palavras escritas e riscadas. Tinha dores de cabeça que lhe faziam doer os olhos, sentia os globos oculares claramente defi nidos no interior do crânio, duas esferas de veias a palpitar. De dia ou de noite, adormecia no sofá, perdia os sentidos. Não guarda recordação de como saiu de casa naquela tarde, felizmente vestido e calçado; lembra as ruas, talvez Olivais, talvez Chelas, talvez Alcântara ou Telheiras, talvez qualquer bairro de Lisboa com prédios e trânsito. Lembra também algumas vozes a tentarem falar com ele, a perceberem que estava desorientado, a chamarem-lhe rapaz, apesar da barba. Deixou de conseguir organizar os momentos que recorda, antes e depois misturam-se até deixarem de existir; perdido na memória da mesma maneira que, naquela tarde, se perdeu em Lisboa.
Em certas horas, não sabe por que associação ou por que desfoque, chega a confundir essa vez com aquela em que se perdeu da mãe na Rua Augusta. Era um menino de quatro anos, soltaram as mãos dadas durante os minutos em que a mãe precisou de experimentar um casaco de malha, precisou de ver-se ao espelho. José aproveitou essa liberdade para explorar a loja, a porta aberta chamou-o, depois explorou a rua, a multidão e, quando voltou a entrar, a loja era já completamente diferente. Tem essas lembranças bem arrumadas, porque ouviu a mãe contar a história muitas vezes. José não chegou a assustar-se ou a dispensar o comprazimento daquela aventura, foi a mãe que fi cou em pânico, que demorou a acalmar a respiração já depois de o ter encontrado, consolada por empregadas de lojas de pronto a vestir, a rodearem-na e a abanarem-na com tampas de caixas de cartão. Essa era uma lembrança fragmentada porque, quando aconteceu, tinha quatro anos, apenas se agarrava ao presente imediato, o passado esmigalhava-se nas suas costas. Mesmo assim, chegava a confundir esse episódio infantil com aquela desorientação adulta, vinte e oito anos, a achar-se demasiado velho, a achar que precisava de um segundo romance escrito, a acreditar que perderia o nome e a existência sem um segundo romance escrito, a imaginar-se invisível ou morto. Havia também a diferença de, em criança, Lisboa ser um deslumbramento. Em Bucelas, no quintal, na cozinha, a mãe dizia-lhe que iriam a Lisboa quando queria enchê-lo de eletricidade. Foi assim durante muito tempo, mas havia de mudar, mudou ele ou mudou Lisboa.
A mãe nunca chegou a saber que José se tinha perdido em adulto. Essa informação era mais distante do seu mundo do que os longos trinta quilómetros que separavam Bucelas de Lisboa. Voluntária de limpezas na igreja matriz, Igreja de Nossa Senhora da Purifi cação, há muito que decorara o missal. Certos desgostos, o casamento, bodas de prata, tinham-se cristalizado numa satisfação gasosa, aparvalhada, sem expectativas. No primeiro domingo de cada mês, confessava uma seleção de pecados, apenas os que não a deixavam malvista perante o senhor prior. Se alguém lhe tivesse contado que o filho se perdera em Lisboa, a mãe demoraria a acreditar. Por um lado, José estava sozinho na cidade havia dez anos, tempo de conhecer todas as vielas; por outro lado, não era capaz de imaginar que a escrita de um livro fosse razão para problemas de tal ordem. Para sua própria expiação, o fi lho alimentava essa infl uência cega, os livros. Antes tivesse apanhado meningite como o rapaz da vizinha, perdeu alguma audição, mas tornou-se num mecânico gabado por todos. Em julhos da puberdade, enquanto os outros rapazes acertavam em pardais com tiros de pressão de ar, saudável treino de pontaria, José passava horas oculto e silencioso, lia deitado na cama ou escrevia doidices, inclinado sobre um caderno. No princípio, a mãe rezou, pediu a Santa Cecília, protetora dos poetas, que lhe poupasse o filho, que o libertasse dessas ideias. Não alcançando resposta, conformou-se e baixou os olhos perante Deus, aceitando os seus mistérios. A partir daí, passou a rezar pelo filho a Santo Aleixo, protetor dos mendigos.
Após desistir da faculdade, com vinte e quatro ou vinte e cinco anos, José apareceu em Bucelas com o primeiro romance na mão, orgulhoso e convencido. A mãe deu-lhe os parabéns, percebeu que os olhos do rapaz pediam essa reação. Mas, em silêncio, recordou a adolescência custosa do fi lho, revoltado, ideias fi xas, poemas sem rima e sem jeito, acne selvagem, e temeu que nunca mais crescesse. Por essa imaturidade, por essa falta de preparação para a vida, culpava exclusivamente o marido, pai de José. Deixara de passar serões inteiros a cismar na deslealdade e na cobardia do marido, mas ainda o culpava por tudo.
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