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Benjamim Parlagrecco |
Na década de sessenta do século passado, vivia em Cantão um negociante de chá, imensamente rico, de nome Mr. Clay. Era um velho alto, seco e insociável. Tinha uma casa magnífica e uma esplêndida carruagem, e em ambas se sentava de costas direitas, silencioso e solitário. Entre os europeus de Cantão, Mr. Clay tinha fama de homem avaro e duro como ferro. As pessoas evitavam‑no. A sua reputação devia‑se mais ao seu aspecto, à sua voz e maneiras, do que a algo que ele tivesse feito. Em todo o caso, corriam sobre ele duas ou três histórias, muitas vezes repetidas, que pareciam confirmar a opinião geral. Uma dessas histórias era a seguinte: Quinze anos atrás, um comerciante francês, que em tempos fora sócio de Mr. Clay mas se estabelecera por conta própria depois duma desavença entre ambos, arruinara‑se com especulações mal‑asadas. Buscando uma última oportunidade, o francês tentou obter uma consignação de chá a bordo do veleiro Thermopylae, que se encontrava atracado no porto. Mas ele devia a Mr. Clay a soma de trezentos guinéus, e o seu credor apoderou‑se da mercadoria e expediu no navio o seu próprio carregamento de chá, com o que acabou de arruinar o seu rival. O francês perdeu tudo, a sua casa foi vendida e ele foi lançado na rua com a sua família. Quando percebeu que não havia remédio para os seus infortúnios, suicidou‑se O comerciante francês havia sido um homem talentoso e amável. Tinha uma mulher encantadora e uma família numerosa. Contrastado com o pétreo Mr. Clay, a sua figura começou então a brilhar numa aura de suaves e alegres raios aos olhos dos seus amigos, que fizeram uma coleta de dinheiro para entregar à viúva. Mas a rivalidade entre a comunidade francesa e inglesa de Cantão impediu que se tivesse juntado uma quantia significativa, e passado algum tempo a senhora francesa desapareceu, juntamente com os filhos, do horizonte dos seus antigos conhecidos. Mr. Clay ficou com a casa do morto, uma bela e ampla moradia com um grande jardim, em cujos relvados passeavam pavões. Era ele quem ali vivia agora. Com o tempo, esta história adquiriu um carácter mítico. Dizia‑se que Monsieur Dupont, no seu último dia de vida, chamara a sua bela e amável esposa e os seus jovens e brilhantes filhos. Como todas as suas desventuras, declarara, haviam começado no momento em que vira pela primeira vez Mr. Clay, ele fê‑los então jurar solenemente que nunca mais, fosse em que lugar ou circunstância fosse, voltariam a olhar para o rosto daquele homem. Dizia‑se também que antes de abandonar a sua casa, em que tinha tanto orgulho, o francês havia queimado ou partido todas as suas peças artísticas, afirmando que nenhum objecto criado para o embelezamento da vida admitiria viver com o novo senhor da casa. Mas deixara em todas as salas os altos espelhos de douradas molduras trazidos de França, que até então só haviam reflectido cenas alegres e afectuosas, declarando que o castigo do seu assassino seria deparar, para onde quer que se voltasse, com o retrato de um carrasco. Mr. Clay instalou‑se na casa e comia sozinho, de frente para o seu retrato. É duvidoso que alguma vez ele tenha tido consciência da ausência de amigos à sua volta, já que a ideia de amizade nunca entrara nos seus planos de vida. Se a ordem do mundo tivesse sido deixada inteiramente ao seu critério, Mr. Clay não a alteraria em nada; e era natural que acreditasse que as coisas eram como eram porque ele assim as desejara. Aos poucos, na sua carreira de nababo Mr. Clay acabara por se julgar omnipotente. Outros mercadores de Cantão tinham idêntica fé em si próprios e, tal como Mr. Clay, conservavam‑na desviando os olhos de tudo o que no mundo extravasasse a esfera do seu poder. Aos setenta anos, Mr. Clay caiu doente com um ataque de gota, e durante muito tempo ficou praticamente paralisado. As dores eram tão fortes que não conseguia dormir, e as noites pareciam‑lhe então infinitamente longas. Uma noite, já tarde, um dos jovens escrivães de Mr. Clay veio vê‑lo com uma pilha de livros de contabilidade que estivera a rever. Ouvindo‑o a falar com os criados, o velho, deitado na cama, fê‑lo entrar no quarto e rever com ele os ditos livros. Chegada a manhã, Mr. Clay concluiu que essa noite passara menos devagar do que as outras. Assim, na noite seguinte tornou a chamar o escrivão e de novo lhe ordenou que lesse em voz alta os registos. A partir de então, ficou acordado que o jovem apareceria no vasto e luxuoso quarto de dormir às nove horas, a fim de ler para o patrão, à luz duma vela, as contas, contratos e estimativas dos negócios de Mr. Clay. O jovem tinha uma voz sonora, mas ao fim da noite já começava a falhar. Isto irritava Mr. Clay, cujo ouvido já não era tão bom como nos seus tempos de juventude. Disse ao escrivão que lhe estava a pagar para fazer o seu trabalho, e que se ele não conseguia cumpri‑lo satisfatoriamente, despedi‑lo‑ia e contrataria outro para o seu lugar. Quando chegaram ao fim dos livros que estavam em uso no escritório, o velho suspirou e rodou a cabeça na almofada. Depois de reflectir sobre o assunto, o escrivão foi aos armários buscar livros de há cinco, dez e quinze anos, e leu‑ os igualmente em voz alta, palavra por palavra, durante as horas da noite. Mr. Clay ouvia‑o atentamente; a leitura trazia‑lhe à mente os esquemas e triunfos do passado. Mas as noites eram longas; com o tempo, até os livros mais antigos chegaram ao fim e ele teve de ler as mesmas coisas novamente. Uma manhã, depois de o jovem ter lido pela terceira vez os documentos relativos a um negócio de vinte anos antes, e quando se preparava para ir também dormir, Mr. Clay reteve‑o, parecendo ter algo em mente. As elucubrações do seu amo eram sempre da mais alta importância para o escrivão, e por isso esperou que ele encontrasse palavras para exprimir o que pretendia. Passado um instante, Mr. Clay perguntou‑lhe, relutantemente e com um ar embaraçado e dubitativo, se não tinha conhecimento de outro tipo de livros. O empregado respondeu que não, que nunca ouvira falar de outro tipo de livros, mas que trataria de os encontrar se Mr. Clay lhe explicasse o que pretendia. No mesmo jeito hesitante, Mr. Clay disse‑ lhe que tinha em mente livros e relatos, não de contas e de negócios, mas de outras coisas que as pessoas concebiam às vezes e punham por escrito, para que outras as lessem. O escrivão reflectiu por momentos e disse que não, que nunca tinha ouvido falar de tais livros. Aqui terminou a conversa, e o empregado pediu licença para sair. A caminho de casa, o jovem ia revolvendo mentalmente a pergunta de Mr. Clay. Concluiu que a pergunta emanara de uma necessidade profunda, meio contra a própria vontade do velho, que a fizera com uma espécie de timidez e mesmo vergonha. Se o empregado tivesse na sua natureza algum sentido do decoro, teria varrido da memória aquela momentânea falha de dignidade do seu patrão. Mas não tendo em si tal qualidade, ele começou a reflectir sobre o assunto. A pergunta constituía, sem dúvida, um sintoma de fraqueza por parte do velho; podia ser até um prenúncio de morte. Que consequências teria para si próprio, pensou ele, um tal desenlace?Karen Blixen, "A História Imortal"
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