quarta-feira, dezembro 22

Você é um número

Se você não tomar cuidado vira número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento – tudo é número.

Se é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem propriedade, também. Se é sócio de um clube, tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras, tem o número da cadeira.


É por isso que vou tomar aulas particulares de matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas de física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.

Se você é comerciante, seu alvará de localização o classifica também.

Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência, também é solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio, recebe um número. Para tomar um avião, dão-lhe um número. Se possui ações, também recebe um, como acionista de uma companhia. É claro que você é um número no recenseamento. Se é católico, recebe número de batismo. No registro civil ou religioso você é numerado. Se possui personalidade jurídica, tem. E quando a gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também.

Nós não somos ninguém? Protesto. Aliás é inútil o protesto. E vai ver meu protesto também é número. Uma amiga minha contou que no Alto Sertão de Pernambuco uma mulher estava com o filho doente, desidratado, foi ao posto de saúde. E recebeu a ficha de número dez. Mas dentro do horário previsto pelo médico a criança não pôde ser atendida porque só atenderam até o número nove. A criança morreu por causa de um número. Nós somos culpados.
Clarice Lispector

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