quinta-feira, dezembro 9

Assim começa...

Não há como saber precisamente a identidade da monja Myôkaku ou quando ela escreveu “Sonho de uma noite”, mas fica evidente por meio de seus escritos anteriores e posteriores à referida obra que, num certo período, essa senhora serviu como empregada na casa do senhor de Musashi. Depois da queda do clã, raspou a cabeça e foi viver em retiro “numa cabana de sapé no meio de remotas montanhas, onde não havia nada a fazer a não ser orar dia e noite por Buda”, conforme suas próprias palavras. Dessa maneira, conclui-se que foi na ociosidade da idade avançada que ela registrou suas memórias. Mas, afinal, com que objetivo uma monja “sem nenhum empreendimento a não ser orar por Buda” teria resolvido escrever suas memórias? De acordo com sua própria explicação:

Depois de ponderar a conduta do senhor de Musashi, compreendi que neste mundo os homens não se dividem entre bons e maus, heróis e vulgares. O inteligente pode ser por vezes banal, o corajoso pode ser fraco, e aquele que no passado esmagou milhares de inimigos em batalhas será agora assaltado em sua própria casa pelos demônios do inferno. Da mesma forma como a mais formosa das mulheres pode mostrar um temperamento feroz, o mais valoroso guerreiro pode subitamente virar uma besta hedionda. Quem sabe o senhor de Musashi não tenha sido o espírito reencarnado do piedoso Buda, que renasce neste mundo de tempos em tempos, graças ao ciclo do samsara, para libertar-nos das ilusões, e que usou o próprio corpo para demonstrar a inexorável lei de causa e efeito?  

A monja conclui ainda que:

... incorporando os tormentos do inferno em seu próprio corpo sagrado, o senhor de Musashi mostrou-nos, a nós, mortais comuns, o caminho da iluminação. Sua existência foi uma bênção para todos nós. Escrevo este relato de suas ações com sentimento de gratidão pelo seu espírito gentil e como uma oferenda em favor da tranquilidade de sua alma. Esse é meu único objetivo. Se houver quem ridicularize ou desdenhe o  comportamento de meu amo, amaldiçoado seja. Pessoas de discernimento sentirão apenas gratidão. 

Seus argumentos parecem um pouco artificiosos, porém, e certos indícios nos fazem suspeitar que talvez não acreditasse nas próprias explicações. Ela nunca se casou e, portanto, é claro que suas necessidades físicas nunca foram satisfeitas. Uma das suposições é que tenha escrito tudo aquilo para tentar aliviar a própria solidão. Mas isso é mera especulação. 

O autor de “Confissões de Dôami”, por outro lado, não deixou nenhuma pista sobre suas motivações, mas é óbvio que tampouco pôde apagar da memória os “atos terríveis do meu amo” ou sua própria e extraordinária experiência estando a serviço dele. Não resta dúvida de que, quanto mais refletia sobre tais experiências, mais elas lhe pareciam estranhas, e, no fim, não resistiu à tentação de registrar tudo no papel. Enquanto a monja Myôkaku chegava à feliz porém improvável conclusão de que o senhor de Musashi era a reencarnação de Buda, Dôami parece ter tido uma clara percepção do processo mental de seu amo, e como resultado teria conquistado a total confiança dele. De tempo em tempo seu senhor lhe revelaria sua angústia interior, confidenciando a história de seu apetite sexual desde a infância, em busca de compreensão e cumplicidade. Pensando bem, Dôami era um homem com certo pendor à adulação, e talvez tenha aceitado a perversão do amo como algo inerente à natureza daquele, ou, se não foi isso apenas fingiu aceitá-la, no início para agradá-lo e depois, no decorrer do processo, teria sucumbido, deixando-se converter. De toda forma, é incontestável que Dôami se tornou um companheiro indispensável no “paraíso secreto” de seu amo. Sem Dôami é possível que os jogos sexuais daquele não tivessem trilhado um curso tão perverso, e por essa razão ele alguma vez amaldiçoou a existência de Dôami. Era frequente o senhor repreender Dôami, chegando a bater nele, e por vezes, ao que parece, esteve perto de liquidá-lo com a espada. Dôami, porém, foi um homem de sorte: entre os homens e as mulheres que participaram dos “jogos” do senhor, raríssimos conseguiram escapar com vida. Por ser o mais vulnerável, Dôami deve ter encarado a morte mais vezes do que ninguém. Não tenho dúvida de que escapou da jaula dos leões tanto por ser querido como por ser odiado. Mais do que tudo, pode-se dizer que sua sobrevivência só aconteceu graças a sua vigilância e tato.

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