domingo, dezembro 12

Assim começa...

Ninguém lhe prestou maior atenção, pois naquele local e hora — uma esquina da avenida principal da cidade: oito da noite — ele era apenas uma das muitas centenas de criaturas humanas que se moviam nas calçadas. À primeira vista sua aparência nada revelava de extraordinário. Era um homem de estatura mediana, teria quando

muito trinta anos, trajava roupa de tropical gris e estava sem chapéu. Quem, entretanto, lhe examinasse o rosto mais de perto, notaria algo de anormal naqueles olhos cujas pupilas ora se esvaziavam, como as de certos loucos, ora se animavam dum atônito fulgor de medo, como as dum animal acuado.

O homem de gris deu alguns passos, fez uma volta em torno de si mesmo, pareceu que ia entrar pela porta duma casa de apartamentos, mas recuou e, depois de colidir com dois ou três passantes, estacou à beira da calçada, moveu a cabeça dum lado para outro, como quem procura orientar-se, e deu um brusco passo à frente... Sentiu que alguém lhe agarrava o braço e o puxava com violência para cima do meio-­fio, ao mesmo tempo que lhe gritava ao ouvido: “Quer morrer atropelado? Atravesse a rua pela faixa”. Ele não disse palavra nem sequer olhou para o homem que o detivera. Ergueu o rosto para o céu e pronunciou o nome de mulher que vinha repetindo mentalmente desde que aparecera àquela esquina, havia pouco mais dum minuto.

Sua voz não se sumira de todo no ar e já aquela combinação de sons cessava de ter para ele qualquer sentido; não lhe evocava nenhuma imagem: era como a sombra dum corpo inexistente. E essa sombra mesmo se apagou numa fração de segundo.

Olhou em torno e não reconheceu nada nem ninguém. Estava perdido numa cidade que jamais vira. Recostou-se a um poste e ali ficou a sacudir a cabeça dum lado para outro, como para dissipar o nevoeiro que lhe embaciava as ideias. De olhos cerrados, procurava desesperadamente lembrar-­se, e esse esforço lhe atirava o espírito em abismos vertiginosos, em sucessivas quedas no vácuo...

Quem sou? Onde estou? Que aconteceu?

Não era com a mente que ele fazia essas perguntas angustiadas, nem elas chegavam a articular­-se em palavras e frases. Essas urgentes indagações em torno de identidade, tempo e espaço estavam subterraneamente contidas naquela ânsia aturdida. Era como um homem que, despertando em quarto escuro, procurasse às cegas, num terror quase pânico, uma janela para o ar livre, para a luz.

Continuou recostado ao poste, recusando-­se a abrir os olhos, temendo até pensar, pois isso lhe dava uma sensação de desmaio, lançava­-o naqueles precipícios brancos e vazios.

O suor escorria-­lhe pela testa, pelas faces, pelo dorso. Fazia um calor sufocante. O ar morto e espesso tinha algo de viscoso. Das lajes das calçadas e do asfalto das ruas, batidos o dia inteiro pela soalheira, subia um bafo de fornalha.

Com o rosto colado ao poste, o Desconhecido escutava os ruídos da noite: o tropel e as vozes indistintas dos transeuntes na calçada; a surda trovoada do tráfego riscada pelo trombetear das buzinas e, a intervalos regulares, pelo tilintar das campainhas das sinaleiras.

A cidade parecia um ser vivo, monstro de corpo escaldante a arquejar e transpirar na noite abafada. Houve um momento em que o homem de gris confundiu as batidas do próprio coração com o rolar do tráfego, e foi então como se ele tivesse a cidade e a noite dentro do peito.

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