sábado, dezembro 11

Cronómetro

Estou em movimento, avanço da maneira que o corpo me permite, condicionado pela forma das articulações, pela força dos músculos, pela elasticidade de tendões. Sou uma máquina orgânica, imperfeita como todas as máquinas. Existo de acordo com esse funcionamento, dependo dele no movimento que exerço agora e, também, a um nível mais amplo e absoluto, dependo dele para estar nos lugares onde estou.

E levo no pulso uma máquina que, como a natureza, como eu próprio, tenta medir o que sou. É uma máquina que me informa sobre mim e, ao fazê-lo, me informa sobre o mundo. Através de números, não me fala apenas acerca do seu funcionamento, fala-me também acerca da sua essência.

Enquanto corro, os segundos substituem-se uns aos outros no meu pulso. Os minutos aguentam mais tempo, permanecem imutáveis, arrogantes durante sessenta segundos e, depois, na viragem de algo, desaparecem; também são substituídos, dão lugar a outro minuto, com igual soberba e igual solidez aparente. Diante de mim, os meus pés alternam-se, o direito ultrapassa-me e puxa-me, o esquerdo ultrapassa-me e puxa-me. São passos que, um a um, possuem o seu instante próprio. Pertence-lhes. Dentro do peito, no centro, levo o coração a bater, cada batida é absolutamente necessária para a construção deste ritmo. Eu sei que essas batidas dão origem a um fluxo de sangue que me atravessa em todas as direções, eu sei que levo tudo isso debaixo da pele. Também terá o seu ritmo. Procurando com uma lupa, um microscópio, encontra-se intermitência mesmo naquilo que flui.

Respiro, inspiro e expiro, inspiro e expiro, respiro. Os meus pulmões enchem-se com o ar que me entra pelas narinas, sinto-o na garganta, e esvaziam-se com ar que também sinto na garganta e me sai pela boca, devolvo-o ao início da noite. Corro a poucos metros do oceano, no caminho de cimento entre a areia da praia e a estrada. As ondas lançam-se sobre a areia, estendem-se e, depois, recolhem-se, deslizam, escorregam na areia lisa. São essas mesmas ondas que a alisam. Lá em cima, as primeiras estrelas. Qual é a porção de tempo que marcam?

No outro lado, enquanto corro, passam carros ocasionais. Às vezes, passa um e, depois, tempo, uma pausa, silêncio, e passa outro a grande velocidade, e nada, durante um momento longo, nada, e dois carros seguidos. Apesar de não ser capaz de decifrar o seu ritmo, a sua lógica, não creio que sejam aleatórios. Saíram de algum lugar num instante preciso, fizeram um caminho específico para passarem por mim num instante exato. Têm o seu mundo próprio que, visto daqui, comporta uma complexidade distante. Recusar a sua razão seria demasiado fácil.

Corro sobre tudo isto. Acrescento passos aos segundos, ao meu coração, à minha respiração, às ondas, aos carros, às estrelas. São como linhas numa fita métrica, marcam milímetros e centímetros. E, em tantos aspetos, sou comparável ao vento que começou agora a levantar-se. Como ele, também eu transporto essa superfície que as marcas tentam quantificar, é transparente e ilimitada, nela cabem os segundos, os meses, as idades, os filhos, a vida inteira; nela cabem os passos que dou agora e que dei durante tardes enormes, durante verões que pareciam intermináveis, todos os passos que ainda darei; nela cabe a minha respiração a correr, a dormir, a ler ou à espera que o tempo passe; nela cabem todas as ondas que ouço, que imagino, imaginei e todas aquelas que ignorei, em horas longe do mar. O vento sabe do falo. Como eu, o vento também corre. Como eu, também existe desde sempre e para sempre.
José Luís Peixoto

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