Não conto - porque ao público não interessa e mesmo que interessasse eu não contaria - como optei pela História. Quem me incentivou a fazê-lo foi meu pai, o velho comuna Aurélio Silva. Operário, o que ganhava como gráfico mal dava para sustentar a família - mulher, cinco filhos; mas tinha uma fé inabalável no futuro, para ele sintetizado numa única e mágica palavra: comunismo. Nunca se viu, nunca se verá, alguém com tamanha crença num ideal. Não era apenas um militante, era um devoto estudioso da doutrina. Devorava todos os livros que os companheiros lhe emprestavam. Como tinha pouco tempo, lia até altas horas da noite, apesar dos protestos de minha mãe. No dia seguinte mal conseguia trabalhar; de tão cansado, chegava a cabecear de sono - o que resultou num trágico acidente: a guilhotina que operava decepou-lhe a mão direita. Inválido, foi sumariamente despedido. Os companheiros do Partido arranjaram-lhe outro emprego - vigia do sindicato -, mas sua vida nunca mais foi a mesma. Deprimia-se facilmente, chorava por nada. Minha mãe não sabia o que fazer, meus irmãos não tinham muita paciência. Cabia a mim, portanto, dar-lhe algum apoio. Conversávamos horas a fio. Conversávamos, não; ele falava, eu escutava. E falava sempre sobre o seu passado de militante. A obra de Marx dizia, olhos úmidos, foi para mim uma revelação. Na verdade lera apenas um resumo de O capital, mas tinha sido o suficiente: de repente tudo ficara claro a seus olhos, a História tinha um sentido; mais, tinha leis.
Foi por causa desses papos que escolhi História? Acho que sim. Era como se eu o indenizasse, compreende?, pela mão que havia perdido, e pelo sofrimento...Chorou de alegria quando passei no vestibular: você será aquilo que eu não pude ser, dizia, um grande intelectual, um líder do Partido.
Enganava-se, o pobre homem. Eu era esquerdista, mas não militante: nunca me submeti a essas regras de partido. Na universidade, participei de alguns movimentos de protesto; assinei manifestos, distribuí panfletos, mas quando concluí o curso já não estava mais interessado em política. Tinha o diploma, precisava ganhar a vida - àquela altura meu pai tinha falecido, e o sustento de minha mãe corria exclusivamente por minha conta, porque eu morava com ela. Gostava de ensinar, de modo que arranjei um emprego como professor num colégio público. O salário era baixo, a escola pobre e sem recursos, mas o que mais me chateava era o fato de que os alunos não davam a mínima para a disciplina. Para que a gente precisa saber dos egípcios, perguntavam, dos faraós, esses caras já morreram há tanto tempo. Eram uns chatos, aqueles alunos, e eu já estava ficando com raiva deles e querendo mandar tudo à merda. Antes de largar o colégio, porém, decidi fazer uma última tentativa. Bolei uma brincadeira, uma encenação na qual cada aluno deveria representar um personagem histórico. Para minha surpresa, a coisa entusiasmou a garotada. Era o assunto do dia, na escola: reis, condes, generais, os alunos não falavam de outra coisa. Os outros professores, admirados, me cumprimentavam pela ideia. E aí aconteceu.
Um dos alunos, um rapaz muito quieto, muito humilde, resolveu representar o papel de um príncipe qualquer, já não lembro qual. Entregou-se por completo à tarefa. Pesquisando a vida do personagem, passava horas na biblioteca - a encarregada tinha até de mandá-lo embora. Seu comportamento mudou; tratava os colegas de forma estranha, agressiva. Muitos se queixavam, mas eu não dava muita bola: afinal, tratava-se de um adolescente, e adolescentes têm dessas coisas.
Um dia a secretária da escola veio à sala de aula, chamou-me ao corredor: uma mulher estava no saguão de entrada querendo falar comigo. Está furiosa, acrescentou, alarmada, é melhor você ir até lá. Fui.
Era a mãe do garoto. O que é que o senhor andou fazendo com meu filho, berrou, tão logo me viu. Tentei acalmá-la, pedi que me contasse o que estava acontecendo. Ainda irritada, disse que o filho não lhe obedecia mais, tornara-se arrogante, mandão. Não arrumava mais a cama, deixava as roupas espalhadas para que alguém as juntasse.
- Tudo por sua causa - queixou-se. - Por causa desse tal trabalho que o senhor inventou.
Queria fazer queixa à direção, mas eu a dissuadi: pode deixar que resolvo o problema, garanti.
Chamei o garoto para uma conversa particular. De fato, ele já não era o mesmo Luizinho que antes falava comigo encolhido, olhos no chão. Eu agora tinha diante de mim era alguém com pose de príncipe. Cautelosamente, perguntei se se dava conta dessa mudança e a que a atribuía. De início respondeu de forma arrogante - não precisava me dar satisfações, quem era eu, um professorzinho medíocre - mas, de súbito, abriu o jogo. Sim, algo tinha acontecido, algo extraordinário. Ele não estava apenas representando um papel; estava vivendo uma existência diferente. Tinha voltado ao passado, e ao fazê-lo descobrira que na realidade fora não um príncipe, como modestamente supusera, mas um rei, um rei poderoso e cruel, desses monarcas que não hesitam em mandar matar os inimigos. Já liquidei mais de três mil, garantiu, orgulhoso. Contou-me com detalhes uma dessas execuções, realizada no grande pátio do castelo real e assistida por uma multidão. Descreveu-me como o carrasco posicionara o pescoço do condenado no cepo, como lhe decepara a cabeça com um golpe de machado, o sangue esguichando sobre as pessoas que estavam na frente. Devo dizer que fiquei impressionado: era como se o rapaz estivesse mesmo vivendo a cena. Ao terminar a narrativa, agradeceu-me, magnânimo, por ter oportunizado o recuo no tempo que lhe permitira encontrar sua verdadeira personalidade.
- Você será recompensado - prometeu, e foi-se.
Aturdido, eu não sabia o que pensar. Mas logo dei-me conta das extraordinárias possibilidades que o caso do garoto me proporcionava. Um novo caminho abria-se diante de mim: eu me descobria terapeuta de vidas passadas.
Essa é a história que conto nas entrevistas. E já a contei tantas vezes que para mim se tornou verdade. Fato ou ficção, o certo é que as pessoas gostam muito, e é o que importa. Depois disso, fiz um curso sobre terapia de vidas passadas, claro, mas o método que uso é meu mesmo, baseado no conhecimento que acumulei como professor de História. Os pacientes voltam ao passado; enquanto estão tendo suas visões, vou explicando: esse lugar onde você está é o palácio real, esse homem de armadura à sua frente é Frederico, o Grande, esses outros são os cortesãos... Costumo dizer que faço o papel de guia, conduzindo as pessoas pelos labirintos do tempo.
O sucesso foi imediato. Comecei atendendo pessoas numa salinha de um velho edifício no centro da cidade. Em pouco tempo minha fama se espalhou. A demanda cresceu espantosamente; o ganho idem. Tive de procurar um lugar maior e mais confortável - mais apropriado para a diferenciada clientela que eu agora tinha. Um corretor de imóveis indicou-me um velho casarão, numa rua tranquila de subúrbio. Fui até lá, e tão logo entrei dei-me conta de que era o lugar ideal: a escadaria da entrada guarnecida por leões, as peças amplas, os painéis de madeira de lei, os azulejos portugueses nos corredores, as antigas luminárias, tudo aquilo remetia ao passado; era, portanto, o cenário ideal para pessoas querendo regredir no tempo. A mudança assinalou a culminância de meu sucesso, àquela altura já consolidado. Eu era procurado por empresários, artistas, atores de tevê. Mudei-me para um apartamento novo, comprei um carro importado. A mídia corria atrás de mim. Editoras de auto-ajuda assediavam-me para que escrevesse um livro.
Foi então que ela apareceu.
Uma tarde, a secretária anunciou que alguém queria me ver, uma moça que tinha me visto na tevê e concluíra: terapia de vidas passadas era exatamente aquilo de que necessitava.
- É filha de fazendeiro - acrescentou a secretária, piscando o olho. Ou seja, a moça tinha grana, o que não era decisivo mas, claro, pesava na balança. Recebi-a, admiti-a para o tratamento.
Na primeira sessão, chorou muito. Contou que não se dava bem com o pai: ele não me entende, nunca me entendeu, nunca foi capaz de se aproximar de mim - a ladainha habitual. À exceção de uma irmã, que lhe servia de confidente, vivera solitária, no seu mundinho - expressão dela - cheio de fantasias. Consolava-se lendo, lendo muito, e estudando - no colégio de freiras que freqüentava era considerada uma das melhores alunas e ganhara vários prêmios por seus conhecimentos acerca da Bíblia: sabia de cor o Cântico dos cânticos, por exemplo.
Cerca de um ano antes tinha vivido um doloroso transe, algo que mudara sua vida. Apaixonara-se por um empregado da fazenda, um rapaz bonito mas estranho, arredio. Coisa súbita: conviviam desde a infância, mas sempre de forma distante até que de repente surgiu aquela coisa, aquele repentino, inexplicável arrebatamento, já não pensava em outra coisa, só queria vê-lo, estar junto dele. E aí a dúvida: falar-lhe de seus sentimentos? Diferente de outros, o rapaz parecia mirá-la com simpatia, com afeto até. Criou coragem, decidiu: abriria o coração, contaria tudo. No dia em que ia fazê-lo, porém, estourou o escândalo na família: o rapaz tivera um caso com a irmã, desvirginara-a. O fazendeiro, furioso, mandou dar uma surra no vilão e expulsou-o.
Foi tal o seu sofrimento - um sofrimento que não podia partilhar com ninguém - que resolveu deixar a pequena cidade do interior onde vivia e veio para a capital. Arranjou um emprego numa grande empresa. O trabalho não era de todo mau e as pessoas no escritório tratavam-na bem, mas ela não conseguia esquecer o que se passara. Ao contrário, sentia-se cada vez pior. Deprimida, dormia mal.
Uma entrevista que dei à tevê foi - palavras dela - verdadeira revelação. Na terapia de vidas passadas encontraria a solução para o seu problema. Estava segura, disse, que eu poderia ajudá-la, guiando-a nos labirintos do passado onde se ocultava a resposta para suas inquietações. Era grande a sua disposição, mas eu estava com o pé atrás. Alguma coisa me dizia que aquela não seria uma terapia comum, que eu pisava terreno minado. Mas começamos, de qualquer maneira, e logo ela estava regredindo no tempo até chegar, em suas visões, ao palácio que vira em sonhos e que era o palácio do rei Salomão (o que, aliás, para mim foi um problema - eu conhecia pouco a Bíblia, tive de estudar o assunto às pressas). Ali estava como uma das muitas esposas do monarca, que descrevia como um homem bonito, encantador; estava profundamente apaixonada por ele. Verdade que essa paixão não era correspondida, mas isso não a impedia de fantasiar cenas tórridas no leito de Salomão, cenas que descrevia em titilantes detalhes.
Logo descobri que atrás disso ocultava-se um propósito: ela estava apaixonada por mim; a mim dirigiam-se tais descrições. Uma vez tentou até abraçar-me. Delicada mas firmemente contive-a, explicando que aquilo na verdade era engano, que ela estava confundindo presente e passado. Ter um caso com uma paciente seria arriscado para mim, era a última coisa que eu queria.
Mas o problema não era esse. O problema era que suas histórias me perturbavam. Surpreendi-me mais de uma vez a espiar os seios que apareciam pela blusa entreaberta. Seios pequenos, lindos, duas harmoniosas elevações. Pelo vale entre aqueles seios queria eu andar; queria subir por eles, lamber aqueles mamilos...O que me deixou alarmado, confuso. Ela, por incrível que possa parecer, nada notava. Conformara-se com minha recusa; além disso suas energias estavam concentradas naquela furiosa caça a seu amado Salomão. Eu não tinha coragem de lhe dizer, vamos parar com esta punheta, você está aqui e eu também, o que interessa é o presente, se você quer fazer amor vamos fazer amor agora. Depois de cada sessão ela se despedia de mim cordialmente e se ia, sem que nada acontecesse. E eu? Eu me trancava no banheiro e me masturbava. Como um adolescente cabaçudo.
Minha ansiedade cresceu ainda mais quando a secretária contou que um homem viera procurá-la na clínica, depois de ter estado na loja. Pela descrição que fez, não tive dúvida: tratava-se do ex-empregado da fazenda do pai, certamente disposto a corrigir seu erro e a pegar a filha certa. O que estava longe de ser uma boa notícia. Entre o rei Salomão e o empregado agora transformado em conquistador minhas possibilidades tornavam-se escassas. Eu precisava me apressar. Não só lutava para recuar no tempo, lutava contra o próprio tempo. A minha angústia manifestava-se nos sonhos: neles eu era Salomão, mas quem estava no meu leito não era a minha paciente, era a rainha de Sabá, que viera de longe para me visitar e a quem eu tinha de proporcionar assessoria política e sexual. Ou seja: eu trepava com uma mulher pensando em outra.
Desses sonhos, acordava banhado em suor. E decidi: tinha de lhe confessar o meu amor. De imediato. Aquela coisa de vidas passadas estava terminando comigo. Porém, como fazê-lo? Como voltar atrás, depois que eu a tinha repelido?
Uma manhã telefonou avisando à secretária que não viria à consulta. Deixou um recado, porém: que eu fosse à tarde a seu apartamento. Uma surpresa lá me aguardaria.
Surpresa? Deus, que surpresa poderia ser aquela? O que encontraria eu, quando aquela porta - a porta do destino - se abrisse? Estaria ela ali, num negligée preto, os lindos seios palpitando por mim? Teria chegado, enfim, o grande momento?
Não passavam, as horas, naquela tarde. Os pacientes falavam, falavam, uma mulher sendo decapitada em plena Revolução Francesa, um homem singrando os mares numa caravela, uma senhora de idade lutando na Guerra Civil americana - eu nada escutava. Olhava o relógio. Às quatro da tarde não agüentei mais: anunciei à secretária que as consultas estavam suspensas e corri para o apartamento dela, a alguns quarteirões dali. Ao dobrar a esquina da rua, meu coração quase parou.
Ela vinha saindo do prédio de apartamentos abraçada a um homem, os dois rindo, felizes. Eu não conhecia o cara, mas nem por um momento tive dúvidas: era o antigo empregado do pai. Carregava uma mala, dela, seguramente. Embarcaram num táxi e se foram.
Entrei no prédio, tomei o elevador, fui até o apartamento que ela partilhava com uma colega de trabalho. Foi essa moça quem me abriu a porta. Perguntou se eu era o terapeuta e, diante de minha afirmativa, anunciou que tinha algo para mim. É da sua ex-paciente, disse, ela foi embora, não volta mais, mas deixou isto aqui.
Entregou-me uma carta e uma pasta de cartolina. A carta, escrita apressadamente, era de despedida - e de agradecimento: a sábia ajuda que eu lhe tinha dado conduzira-a a um resultado até certo ponto surpreendente. A raiva que sentia pelo rapaz que a trocara pela irmã desfizera-se por completo e o antigo amor renascera: ele era o seu rei, o monarca com quem sonhara.
Quanto à pasta de cartolina, continha a história que havia escrito baseada em sua viagem ao passado. Dedicava-a a mim; eu estava autorizado a fazer com a narrativa o que desejasse. Desde que não mencionasse seu nome, poderia, inclusive, divulgá-la.
Essa é a história que tenho lido, dia e noite, desde que ela se foi. Procuro a mim próprio, nessa história. Procuro-me nas linhas e nas entrelinhas, procuro-me nos nomes próprios e nos nomes comuns, procuro-me nos verbos e nos advérbios, nos pontos, nas vírgulas, nas reticências. E não me acho. Assim como não me acho em lugar nenhum. Estou perdido.
Continuo atendendo em minha clínica, mas tenho pensado seriamente em mudar de rumo, em retomar o estudo da História. Vou ganhar menos, e me incomodar mais, mas espero não ter desilusões. Quero esquecê-la.
Que mais? Ah, sim, ela era feia.
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