Para Thiago de Mello
Em Recife e Manaus — metrópoles do Norte e Nordeste — o quintal das casas está sendo substituído por um piso de cimento ou lajotas. Em Boa Viagem, bairro recifense, uma muralha de edifícios projeta uma extensa área de sombra na praia, de modo que os banhistas têm que se contentar com estreitas línguas de sol. No país tropical, luz e sombra projetam-se em lugares trocados.
Ainda mais grave é o caso de Manaus, onde o apagamento da memória urbana parece irreversível. Na década de 1970, um coronel do Exército, nomeado prefeito, mandou derrubar mangueiras centenárias que sombreavam ruas e calçadas. Como se isso não bastasse, esse prefeito, talvez possuído pelo espírito demolidor do barão Haussmann, destruiu praças da cidade para abrir avenidas.
O mais irônico, tristemente irônico, é que a imensa maioria dos prefeitos e vereadores da era democrática não pensa na relação da natureza com a cidade. Hoje, em certas horas do dia, é quase impossível caminhar em Manaus. Não há árvores, e as calçadas são estreitas e esburacadas. Até mesmo os feios oitizeiros, que Mario de Andrade detestava, têm seus dias contados.
Em 1927, quando o autor de Macunaíma passou por Belém, hospedou-se no Grande Hotel, em cuja varanda chupitou, extasiado, um sorvete de bacuri. Esse imponente edifício neoclássico da capital paraense — uma joia arquitetônica do Brasil — também foi demolido durante o governo militar. Um prédio feio de doer os olhos substituiu o Grande Hotel no coração de Belém, essa bela cidade evocada em poemas de Manuel Bandeira e Max Martins.
Quase toda a arquitetura histórica das nossas cidades foi devastada. O centro de São Luiz, pobre e abandonado, é uma promessa de ruínas. Vários casarões e edifícios de Santos, erguidos durante o fausto da economia cafeeira, foram demolidos. Até a belíssima paisagem em relevo do Rio está sendo barrada por edifícios altíssimos. Na cidade de São Paulo, pouca coisa restou da história urbana. E em vários bairros paulistanos de classe média há inúmeros edifícios e calçadas sem uma única árvore.
O desprezo à natureza e à memória das nossas cidades se acentuou a partir da década de 1960, quando a industrialização e o adensamento urbano adquiriram um ritmo acelerado e caótico. Essa urbanização selvagem destruiu edifícios históricos de quase todas as cidades brasileiras. Penso que isso alterou para sempre nossa relação com a natureza e com a própria história das cidades.
Paradoxalmente, proliferam bairros pobres e favelas com nomes de Jardim, como se essa palavra atenuasse a feiura da paisagem e a vergonhosa arquitetura dos conjuntos de habitação popular.
Poucos monumentos e áreas históricos sobreviveram à voracidade dos construtores de caixotes verticais com fachadas de vidro fumê: uma arquitetura de fisionomia funérea, tão medonha que é melhor olhar para as nuvens, ou fechar os olhos e sonhar com Buenos Aires.
Talvez alguns políticos e donos de empreiteiras sintam ódio ao nosso passado: ódio inconsciente, mesmo assim verdadeiro; ou talvez não sintam nada, e toda essa barbárie seja apenas uma mistura de ganância, ignorância e desfaçatez.
Outro dia uma amiga me contou que havia sonhado com o futuro das nossas metrópoles e florestas.
“Foi um pesadelo”, ela disse. “As cidades e florestas inexistiam ou eram invisíveis. A visão do futuro era um monstro bicéfalo: eclipse solar e deserto.”
Milton Hatoum, "Um solitário à espreita"
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