Poeirinha só ganhara um irmão, o Zeca Zonzo, que era desprovido de juízo. Cabeça sempre no ar, as ideias lhe voavam como balões em final de festa. Na miséria em que viviam, nada destoava. Até Poeirinha tinha sonhos pequenos, mais de areia do que castelos.
Às vezes sonhava que ela se convertia em rio e seguia com passo lento, como a princesa de um distante livro, arrastando um manto feito de remoinhos, remendos e retalhos. Mas depressa ela saía do sonho, pois seus pés descalços escaldavam na areia quente. E o rio secava, engolido pelo chão.
Um certo dia, chegou à aldeia o Tio Jaime Litorânio, que achou grave que os seus familiares nunca tivessem conhecido os azuis do mar.
Que a ele o mar lhe havia aberto a porta para o infinito. Podia continuar pobre mas havia, do outro lado do horizonte, uma luz que fazia a espera valer a pena. Deste lado do mundo, faltava essa luz que nasce não do Sol, mas das águas profundas.
A fome, a solidão, a palermice do Zeca, tudo isso o Tio atribuía a uma única carência: a falta de maresia. Há coisas que se podem fazer pela metade, mas enfrentar o mar pede a nossa alma toda inteira. Era o que dizia Jaime.
- Quem nunca viu o mar não sabe o que é chorar!
Certa vez, a menina adoeceu gravemente. Num instante, ela ficou vizinha da morte. O Tio não teve dúvida: teriam que a levar à costa.
Para que se curasse, disse ele. Para que ela renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras praias dentro dela.
- Mas o mar cura assim tão de verdade?
- Vocês não entendem? - respondia ele. - Não há tempo a perder. Metam a menina no barco que a corrente a leva em salvadora viagem.
Contudo, a menina estava tão fraca que a viagem se tornou impossível. Todos se aproximavam da cabeceira e ali ficavam sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. A mãe pegou nas mãos da menina e entoou as velhas melodias de embalar. Em vão. A menina apenas ganhava palidez e o seu respirar era o de um fatigado passarinho. Já se preparavam as finais despedidas quando o irmão Zeca Zonzo trouxe um papel e uma caneta.
- Vou-lhe mostrar o mar, maninha.
Todos pensaram que ele iria desenhar o oceano. Que iria azular o papel e no meio da cor iria pintar uns peixes. E o Sol em cima, como vela em bolo de aniversário. Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra gorda a palavra
MAR
Apenas isso: a palavra inteira e por extenso.
O menino ficou olhando para a folha parecendo que não entendia o que ele mesmo escrevera. Antes mesmo que ele dissesse alguma coisa, a irmã murmurou, em débil suspiro:
-Não vale a pena, mano Zonzo. Eu já não distingo letra, a luz ficou cansada que já não se consegue levantar.
-Não importa, Poeirinha. Eu lhe conduzo o dedo por cima do meu.
Os pais chamaram o moço à razão, ele que poupasse a irmã daquela tontice e que a deixasse apenas respirar. Mas Zeca Zonzo fingiu não escutar. Ele tomou na sua mão os dedos magritos de Maria Poeirinha e os guiou por cima dos traços que desenhara.
-Vês esta letra, Poeirinha?
-Estou tocando sombras, só sombras, só.
Zeca Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito e os ensinasse a decifrar a lisa brancura do papel.
-Experimente outra vez, mana. Com toda a atenção. Agora, já está sentindo?
-Sim. O meu dedo já está a espreitar.
-E que letra é?
E sorriram os dois, perante o espanto dos presentes. Como se descobrissem algo que ninguém mais sabia. E não havia motivo para tanto espanto. Pois a letra m é feita de quê?
É feita de vagas, líquidas linhas que sobem e descem.
E Poeirinha passou o dedo a contornar as concavidades da letrinha.
-É isso, manito. Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio.
-E essa outra letrinha, essa que vem a seguir?
Essa a seguir é um a
É uma ave, uma gaivota pousada nela própria, enrodilhada perante a brisa fria.
Em volta todos se haviam calado. Os dois em coro decidiram não tocar mais na letra para não espantar o pássaro que havia nela.
-E a seguinte letrinha?
E os dedos da menina magoaram-se no r duro, rugoso, com suas ásperas arestas.
O Tio Jaime Litorâneo, lágrima espreitando nos olhos, disse:
- Calem-se todos: já se escuta o marulhar!
Então do leito de Maria Poeirinha se ergueu a gaivota branca, como se fosse um lençol agitado pelo vento. Era Maria Poeira que se erguia? era um simples remoinho de areia branca?
Ou era ela seguindo no rio, debaixo do manto feito de remoinhos, remendos e retalhos?
Ainda hoje, tantos anos passados, Zeca Zonzo, apontando o rosto da sua irmãzinha na fotografia, clama e reclama.
-Eis minha mana poeirinha que foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha.
Mia Couto
Nenhum comentário:
Postar um comentário