sexta-feira, dezembro 8

Prólogo

Desocupado leitor: podes crer, sem juramento, que eu gostaria que este livro, como filho da inteligência, fosse o mais formoso, o mais galhardo e o mais arguto que se pudesse imaginar. Mas não consegui contrariar a ordem da natureza, em que cada coisa gera seu semelhante. Então o que poderia criar meu árido e mal cultivado engenho a não ser a história de um filho seco, murcho, caprichoso e cheio de pensamentos desencontrados que não passaram pela imaginação de nenhum outro, exatamente como alguém que foi concebido num cárcere, onde todo incômodo tem seu assento e onde toda triste discórdia faz sua moradia? O sossego, o lugar agradável, a amenidade dos campos, a placidez dos céus, o murmúrio das fontes e a tranquilidade do espírito são de grande ajuda para que as musas mais estéreis se mostrem fecundas e ofereçam ao mundo partos que o encham de maravilha e alegria.

Acontece de um pai ter um filho feio e sem graça alguma, e o amor que tem por ele venda-lhe os olhos para que não veja seus defeitos, tomando-os antes por sagacidades e belezas, e fala deles aos amigos como de exemplos de espírito e elegância. Mas eu — que, embora pareça pai, sou padrasto de dom Quixote — não quero seguir a corrente costumeira, nem te suplicar quase em lágrimas, como outros fazem, caríssimo leitor, que me perdoes ou toleres os defeitos que vires neste meu filho, pois não és parente nem amigo dele, tens tua alma em teu corpo e teu livre-arbítrio como o melhor entre os melhores, e estás em tua casa, onde és senhor, como o rei de seus tributos, e sabes que cada um pensa o que bem quer, ou não se costuma dizer que “embaixo de meu manto, ao rei mato”? Tudo isso te isenta e te deixa livre de todo respeito e obrigação, de modo que podes dizer tudo aquilo que pensares da história, sem medo de que te caluniem pelo mal ou te premiem pelo bem que disseres dela.

Gostaria somente de te dar esta história nua e crua, sem o ornamento de um prólogo nem do inumerável catálogo dos habituais sonetos, epigramas e elogios que se costuma pôr no começo dos livros. Porque posso te garantir que, embora tenha me custado algum trabalho escrevê-la, nenhum foi maior do que fazer esta introdução que vais lendo. Muitas vezes peguei a pena para escrevê-la e muitas a deixei, por não saber o que escreveria; e estando numa delas empacado, com o papel na frente, a pena atrás da orelha, o cotovelo na mesa e a mão no queixo, pensando no que diria, lá pelas tantas entrou um amigo meu, espirituoso e inteligente, que, vendo-me tão meditativo, me perguntou a causa. Não a ocultando, eu disse que pensava no prólogo que tinha de fazer para a história de dom Quixote e me achava num estado em que nem queria fazê-lo, nem muito menos publicar as façanhas de tão nobre cavaleiro sem ele.

— Pois como quereis vós que não me deixe confuso o que dirá o antigo legislador que chamam povo quando vir que, ao cabo de tantos anos como estes em que durmo no silêncio do esquecimento, saio agora, com o peso da idade nas costas, 2 com um livro seco como palha, longe da invenção, franzino de estilo, pobre de conceitos e carente de toda erudição e doutrina, sem notas nas margens e sem comentários no fim, como vejo em outros livros, ainda que sejam de ficção e profanos, tão cheios de frases de Aristóteles, de Platão e de um bando todo de filósofos, que deixam os leitores admirados e os levam a pensar que os autores são homens lidos, eruditos e eloquentes? E quando citam a Sagrada Escritura, meu caro? Dizem no mínimo que são uns Santos Tomases e outros tantos doutores da Igreja, adequando o estilo de modo tão engenhoso que numa linha pintam um amante devasso e em outra fazem um sermãozinho cristão, que é uma alegria e uma dádiva ouvi-lo ou lê-lo. Disso tudo há de carecer meu livro, porque não tenho o que anotar nas margens nem comentar no fim, muito menos sei que autores sigo nele para nomeá-los no começo, como fazem todos, na ordem do abc , começando em Aristóteles e acabando em Xenofonte e Zoilo ou Zêuxis, mesmo que um fosse maledicente e o outro, pintor. Meu livro também há de carecer de sonetos no princípio, pelo menos de sonetos cujos autores sejam duques, marqueses, condes, bispos, damas ou poetas célebres, embora, se eu os pedisse a dois ou três amigos do ofício, sei que seria atendido, e os fariam sem que os igualassem os versos daqueles que têm mais nome em nossa Espanha. Enfim, meu senhor e amigo — continuei —, resolvi que o senhor dom Quixote fique sepultado em seus arquivos na Mancha até que o céu apresente quem o adorne com todas essas coisas que lhe faltam, porque eu me acho incapaz de supri-las devido a minha insuficiência e poucas letras, e também porque sou acomodado e preguiçoso por natureza para andar procurando autores que digam o que eu sei dizer sem eles. Daí nasce o embaraço e a indecisão em que me achastes: causa suficiente para me pôr assim como vos falei.

Ao ouvir isso, meu amigo me disse, dando uma palmada na testa e disparando uma salva de risos:

— Por Deus, meu irmão, acabo de perceber um engano em que acreditei há muito tempo, desde que vos conheço: sempre vos julguei inteligente e sensato em todas as ações. Mas agora vejo que estais tão longe disso como o céu da terra. Como é possível que coisas de tão pouca monta e tão fáceis de remediar possam ter forças para meter nesse embaraço e alheamento um engenho tão maduro como o vosso, sempre pronto a atropelar e demolir outras dificuldades maiores? Com certeza, isso não nasce por falta de habilidade, mas por excesso de preguiça e penúria mental. Quereis ver se é verdade o que digo? Prestai-me atenção e vereis como, num piscar de olhos, abato todas as vossas dificuldades e corrijo todas as deficiências que dizeis que vos embaraçam e acovardam, impedindo-vos de apresentar ao mundo a história do famoso dom Quixote, luz e espelho de toda a cavalaria andante.
Miguel de Cervantes, 'Dom Quixote"

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